sábado, 15 de agosto de 2015

Dramas da Obsessão - A Severidade da Lei - Capítulo XII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes

Entrementes, doze anos se passaram desde que Angelita regressara à Pátria Espiritual. Por esse tempo, eu continuava emprestando o meu concurso de assistente espiritual ao mesmo núcleo de estudos e experimentações espíritas citado no caso precedente. Como vimos, aquele núcleo se destacava pelo alto padrão de dedicação e humildade dos seus componentes em geral e de um grupo de médiuns em particular, cujas excelentes faculdades se prestavam facilmente a qualquer labor necessário à Espiritualidade efetuar relativamente à Terra. Dentre todos, no entanto, eu destacava, para as tarefas mais sutis, que implicassem maior precisão de detalhes e penetração no Além-Túmulo, uma jovem quase adolescente — não por preferências descabidas ou pessoais, mas por se tratar de instrumento cujas faculdades, positivas e maleáveis, se prestavam a qualquer serviço mediúnico, sem sacrifícios mútuos, isto é, sem excessivo esforço dela própria e da entidade comunicante. 

Ora, essa menina, espiritista e médium, cujo nome seria Míriam, pertencia ao círculo de relações sociais terrenas de Sarita, a antiga amiga de nossa personagem Angelita, a despeito da grande diferença de idades existente entre ambas. Por sua vez, Sarita, por motivos pertinentes aos acidentes da jornada planetária, transferira a própria residência para a Capital do país. Certa vez em que a minha Míriam descia as montanhas da terra natal para rever amigos e familiares habitantes na Capital, teve ensejo de também visitar Sarita, e esta, conhecedora de que aquela era adepta da Doutrina dos Espíritos, com atribuições nos campos mediúnicos, disse-lhe, pensativa, servindo-se daquele fraseado gentil e afetuoso que eu de muito conhecera junto à pobre Angelita:

— Minha querida amiguinha! Bem sei que o teu coração, perfumado pelas caritativas fragrâncias do Evangelho do Divino Mestre, não saberia desatender a qualquer alma triste que o procurasse em busca de um alívio para os seus dissabores, ou de uma esperança! Eu sou católica romana, mas, acima de tudo, sou cristã, e, por isso mesmo, aceito as verdades espíritas, porque sei que elas se firmam não somente nas próprias leis da Natureza, como nos ensinamentos do Evangelho do Senhor. Possuí, há muitos anos, uma amiga por nome Angelita, a quem muito amei pelos infortúnios que suportou e por quem muito sofri e chorei, recomendando-a ao amor de Deus e de seus anjos. É morta há doze anos! Tu eras pequenina, contavas apenas oito anos de idade, quando fechei o esquife de Angelita para conduzi-la ao Campo Santo. 

Durante cinco anos, duas vezes ao dia, eu orei sem desfalecimentos, para que a alma de Angelita encontrasse feliz acolhimento na Casa Espiritual de nosso Pai... e há sete anos oro para que ela me apareça em sonhos, ao menos, afirmando-me, pessoalmente, se está realmente “salva”, se é plenamente feliz onde se encontra, se obteve o perdão do Céu para faltas que, possivelmente, tivesse cometido, porquanto, até certo tempo de sua vida, ela se conservou avessa ao respeito a Deus e à crença na existência da alma. Tu, Míriam, que sabes confabular com os fantasmas luminosos do Além, pede a um deles notícias de minha Angelita, e, em sinal de gratidão por esse favor, prometo que, por ti e pelo fantasma que mo conceder, passarei a orar durante outros sete anos, suplicando que as bênçãos do Alto semeiem de rosas o destino de ambos.

As lágrimas turvaram os meigos olhos de Sarita, cujos cabelos, agora já encanecidos, pareciam suave auréola matizando de neblina a sua fronte de madona. A súplica, no entanto, emitida por vibrações muito amorosas e inspirada no respeito às coisas celestes, repercutiu no mundo invisível com as tonalidades santas de uma prece. Despertou minha atenção e registrei o pedido feito ao meu médium. Comuniquei-me com integrantes espirituais da formosa falange de Antônio de Pádua, da qual ela e Angelita seriam pupilas... e acertamos em que o desejo da amável Sarita fosse imediatamente atendido, visto que sobejos testemunhos de humildade, de fé, amor e perseverança ela já apresentara às leis eternas para merecer a dádiva a que aspirava, e a fim de que não viesse a se decepcionar, o seu coração, por um silêncio muito prolongado do mundo invisível. 

Asseverou-me, porém, o Espírito, agora feliz, da própria Angelita, que freqüentemente a boa amiga vinha até ela, em Além-Túmulo, durante o sono corporal; que conversavam ambas e se entendiam perfeitamente. Mas que Sarita, não possuindo faculdades mediúnicas positivas, não conservava possibilidades de deter lembranças para intuições definidas, ao despertar.

No entanto, regressando Míriam à sua residência, na primeira noite de trabalhos, no seu posto de intérprete do mundo invisível, providenciei para que o Espírito de Angelita se aproximasse e a envolvesse em suas vibrações, materializando-se à sua visão mediúnica e ditando, psicográficamente, com acentos vibratórios muito positivos, a fim de transmitir mesmo os característicos da própria caligrafia que tivera em vida planetária, uma carta de amor fraterno, com o noticiário desejado por sua dedicada amiga, que não a esquecera.

Jubilosa e feliz, a inválida de outrora, agora Espírito radioso, escreveu então, pela mão de Míriam, que, passiva, traduzia fielmente o pensamento que lhe era projetado:

— “Minha querida Sarita: Venho, finalmente, agradecer-te a inapreciável dedicação que há vinte e três anos me testemunhas! Abençoem-te Deus e os seus anjos, minha amiga, pelo valor que, aqui, no Além-Túmulo, de onde te escrevo, representou o teu auxílio à pobre enferma, que sofreu e chorou durante onze longos anos, pois a felicidade, que hoje aqui desfruto, em grande parte é a ti que devo, àqueles serões diários que ao pé de mim fazias com tuas edificantes leituras, tuas orações generosas, teus conselhos salutares, que me iniciaram na reeducação necessária, reeducação que, hoje, os amoráveis meninos de “Santo” Antônio de Pádua vêm completando, com o favor do Céu!

Sim, minha querida, estou salva! Estou liberta do peso dos pecados que me amarguravam a consciência! Um dia, quando também habitares onde habito, eu te revelarei esses pecados. Jamais, porém, sofri em Além-Túmulo, senão apenas lamentei a incompreensão e o desvio daqueles que me fizeram sofrer, aos quais, no entanto, sincera e jubilosamente perdoei há muitos anos! Mas... Saibas tu, Sarita, que não foram os onze anos de sofrimentos físicos que me salvaram, mas sim os onze anos de sofrimentos morais que, sobre aquele leito solitário, apenas alegrado pela tua inexcedível boa vontade, eu suportei, contemplando, minuto a minuto, a morte do próprio coração, o despedaçamento das ilusões acalentadas pela juventude, e quando somente a Deus e a ti eu possuía para consolar as minhas lágrimas! Sê feliz como eu sou, Sarita! E recebe minhas bênçãos de amiga agradecida, os ósculos dos meninos de “Santo” Antônio, as bênçãos dos Céus, que nos recomendam amarmos uns aos outros... Tua, de sempre, Angelita.”

Em seguida, o gentil Espírito deixou-se contemplar por Míriam em toda a pujança da felicidade descrita na carta psicografada: docemente aclarado por cintilações azuladas, longa túnica angelical estendendo-se em cauda solene e fosforescente, cabelos louros soltos pelos ombros, um braçado de lírios entre as mãos, meigo anjo a quem somente faltariam asas para recordar as visões que inspiraram o espiritual gênio de Rafael, já expungido de sua consciência, através das lutas do sacrifício das reparações, o feio deslize do século XVIII, em Vila Rica. 

A seu lado, três lindas crianças, pobrezinhas, mas lucilantes, angelicais, pés desnudos, lírios entre as mãos. Míriam pôs-se a chorar diante da visão formosa, exalçando o coração em prece de agradecimento.

No dia seguinte, enviou a mensagem a Sarita, pelo Correio, acompanhada de afetuosa carta onde narrava a visão surpreendente. Ora, do Além estabelecêramos proporcionar a Sarita um testemunho insofismável da imortalidade, um fato concreto que a convencesse e edificasse até ao deslumbramento e à alegria, justo prêmio à longa dedicação demonstrada sob os preceitos da lídima fraternidade.

Por essa razão, na mesma noite em que o fenômeno acima descrito se desenrolava no receptáculo sagrado das operações mediúnicas, no Centro a que Míriam emprestava atividades, repetimo-lo exato, real, à própria Sarita, durante a madrugada, fazendo-a despertar do sono a que se entregava, para extasiá-la ante o aposento iluminado pela presença da amiga e das crianças do varão espiritual Antônio de Pádua, dando-lhe a ouvir a voz tão saudosa da amiga falecida e satisfazendo-lhe, assim, um pedido que, através de humildes e confiantes rogativas, ela suplicava havia sete anos:

— Sim, minha querida Sarita! Estou salva! Estou liberta do peso dos pecados que me amarguravam a consciência! Mas não foram os onze anos de sofrimentos físicos que me permitiram a salvação, mas os onze anos de sofrimentos morais, bem suportados, sobre aquele leito solitário, quando somente a Deus e a ti eu possuía para consolar as minhas lágrimas!

Radiante, felicíssima, louvando a Deus em orações agradecidas, pelo inestimável favor recebido, e atribuindo-o à misericórdia do Pai Celestial e não aos seus méritos pessoais, Sarita, já na manhã seguinte, entrou a presentear as criaturas pobres com muitas dádivas, testemunhando gratidão aos Céus, e escreveu a Míriam narrando o fato. As cartas de ambas se entrecruzaram, pois, pelo caminho.

E Sarita e Míriam foram novamente edificadas, certas de mais uma sublime manifestação do Invisível através do amor, da fraternidade e das doces e imortais alvíssaras do Consolador prometido pelo Nazareno. 

Dramas da Obsessão - A Severidade da Lei - Capítulo XI

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes




Por uma dessas atrações vibratórias que para a maioria dos pensadores se conservam envoltas em impenetráveis mistérios, a entidade Caetano prendera-se de profundo amor àquela que se tornaria sua mãe terrena, que realmente o fora, porque, durante o longo período da gestação e desenvolvimento do seu corpo, tivera o períspirito poderosamente atraído para o dela pelos liames magnéticos necessários ao feito reencarnatório, num aconchego terno e emocional de irradiações amoráveis e encantadoras, que geralmente é o que produz o sentimento imperecível de uma mãe pelo seu filho, e vice-versa, ainda que seus Espíritos sejam desconhecidos (32). 

As intensas vibrações mentais irradiadas pela mulher que será mãe, em favor do entezinho que já palpita em seu seio fecundado; o amoroso, inexcedível carinho do seu coração, que cumula de doces enlevos aquele retalho de si mesma, que será o seu filhinho amado, mesmo antes do nascimento; o desvelo sublime com que lhe prepara o enxovalzinho mimoso, tesouro que suas mãos fabricam entre suaves emoções do coração e pensamentos santificados pela alegria da maternidade, criam em torno da gestante uma atmosfera mental radiosa que atrai, cativa e apaixona o Espírito do nascituro, enquanto comove o observador invisível, que contempla as repercussões que o fato produz nas vibrações de ambos, vibrações que se entrecruzam, se entrelaçam num ósculo santo, a que ambos perfeitamente se adaptam. 

Daí, pois, igualmente, essa ligação indefectível dos filhos com suas mães, além de outras que, em muitos casos, costumam existir a par das que citamos. De um modo idêntico, se a mulher irradia aversão à maternidade, dedicando a esse ser que trás consigo pensamentos malévolos e odiosos, até ao extremo de destruí-lo, negando-lhe a existência por seu intermédio, o inverso se realiza e o Espírito que reencarnaria através dela torna-se, frequentemente, perigoso inimigo, que a perseguirá em Além-Túmulo mais tarde e, possivelmente, em posterior existência, podendo mesmo obsidia-la sob várias formas.

Espiritualmente, Caetano continuava afeito a Angelita, não olvidando ainda que outrora, em Vila Rica, dela recebera o melhor trato a que um escravo poderia aspirar, porque desinteressado, visto que nem mesmo fora sua propriedade. 

Sabia ser Angelita a revivescência espiritual de Rosa, e, conquanto ignorasse os pormenores do feito reencarnatório, distinguia o bastante para acompanhá-la com sentimentos muito confiantes.

De outro modo, reconhecia em Alípio aquele Fernando de quem fora escravo, a quem devera a salvação da morte na forca, mas sob as injunções de quem se aviltara ainda mais, no crime. Não ignorava que, graças a tais delitos, teria de arrastar sobre a Terra, mais dia menos dia, como reencarnado, vidas de expiações e trabalhos. E que, por isso mesmo, era que sua existência incorpórea do momento era povoada de remorsos e alucinações lancinantes. 

Mas, Espírito inferior e retardado no progresso, que se prazia de ser, não se animava a decisões salvadoras sob as advertências dos obreiros do Amor, que o desejariam ajudar. A princípio, não raciocinou francamente sob tal aspecto da própria miséria, ou seja, sobre o fato de Alípio o haver instigado ao crime. Este continuava, para ele, como sendo o bom Senhor que o libertara outrora da forca. Mas, assistindo agora, diariamente, à impiedade deste contra a pobre Angelita, entrou a raciocinar que o mesmo Alípio — o Fernando de Vila Rica — fora o causador das desgraças que afligiam aquela amiga querida e também da sua própria situação miserável, pois, outrora, impelira-o a crimes imperdoáveis, dentre outros o do assassínio bárbaro do recém-nascido, no fundo da velha chácara daquela antiga sede de Província.

Com o desaparecimento da enferma dos liames carnais, recrudesceu a sua irritação contra o despreocupado viúvo, a quem passou a responsabilizar também pela morte desta. E então, contundiam-lhe o coração as dolorosas impressões do abandono a que se via relegado, da saudade, da tristeza inconsolável, pois, enquanto Angelita ascendia a páramos reconfortadores do mundo astral, ele próprio, sem capacidades morais para acompanhá-la, permanecia na própria Terra, entregue a prantos amargos, vagando pela casa vazia e entristecida, perambulando pelas ruas qual mendigo desolado, visitando o Campo Santo onde sabia seu corpo sepultado.

Aversão insopitável contra Alípio avassalou então o coração apaixonado da inferior entidade. Passou a acompanhá-lo, irradiando hostilidades, admoestando-o sempre pelas infelicidades a ele próprio e a Angelita causadas. Seguia-o, como outrora, pelas caçadas e aventuras, mas, agora, choroso e desanimado, desejando-lhe toda a espécie de males e desgraças, em desagravo às ofensas recebidas.






Por sua vez, Alípio continuava servindo ao egoísmo que nutrira sempre, vivendo inteiramente arredado dos deveres da moral. Uma vez enviuvando, negara-se a desposar a jovem a quem seduzira, a qual, agora mãe de duas lindas criancinhas, sofria a humilhação de ser por ele considerada criatura de condição social inferior, a quem não serão devidas verdadeiras atenções; e, pouco depois, dela igualmente se fartando, promovera o matrimônio dela com um pobre homem valetudinário, ao qual concedeu um ordenado mensal para que lhe fosse criando os dois filhos, junto à mãe, sem grandes dificuldades. Sua vida tornara-se, então, anormal, sob o assédio de Caetano. Trabalhador e dinâmico que fora, passou a se sentir inabilitado para quaisquer empreendimentos. Não lograva satisfação e bem-estar em parte alguma, porquanto não laborava a fim de adquiri-los no interior da própria consciência.

Supondo-se enfermo, consultara o médico. Não encontrando em sua organização física senão ligeira alteração nervosa, o facultativo prescreveu distrações, passeios, viagens. Alípio então se pôs a viajar daqui para ali e acolá, entregando-se a prazeres desordenados: teatros licenciosos, amores condenáveis, frequências a clubes noturnos onde se embrutecem as boas tendências da alma, jogos e libações de vinhos, etc., enquanto a entidade sofredora e endurecida, do escravo de outrora, continuava seguindo-o qual repercussão lógica e irremediável do pecaminoso passado que ainda não fora expungido do seu destino...

(32). Nem sempre esses elos são originários do Amor. Poderão formar-se também no ódio, tendo em vista penosas expiações e reparações para o advento da reconciliação dos Espíritos.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Dramas da Obsessão - A Severidade da Lei - Capítulo X

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes

Certo dia chegou à residência do casal, na ausência de Alípio e de Sarita, uma visita para a enferma. A criada fê-la inadvertidamente entrar, encaminhando-a para o aposento onde, de preferência, Angelita permanecia, isto é, a antiga câmara conjugal, agora transformada em escola e salão de visitas. Absorvida pela leitura das consoladoras páginas da “Imitação de Cristo”, Angelita mantinha a alma voltada para as doçuras da Espiritualidade, enquanto o coração se reanimava ante murmúrios inefáveis daquela voz celeste que nos refolhos da sua personalidade ecoava com as mais amorosas e enternecedoras advertências que ela poderia receber de alguém, e lia, comovida:

— “Cristo também foi, neste mundo, desprezado dos homens, e em suma necessidade, entre os opróbrios, o desampararam seus conhecidos e amigos. 
Cristo quis padecer e ser desprezado, e tu ousas queixar-te de alguém? 
Cristo teve adversários e detratores, e tu queres ter a todos por amigos e benfeitores? Se não queres sofrer alguma contrariedade, como serás amigo do Cristo? Sofre com Cristo e por Cristo, se com Cristo queres reinar...

Virou lentamente a página, o coração como que destilando essências espiritualizadas, e seus olhos tristes depararam o que se segue:

— “Se souberes calar e sofrer, verás, sem dúvida, o socorro do Senhor. Ele sabe o tempo e o momento de te livrar; portanto, entrega-te todo a ele.”

— “Ao humilde, Deus protege e salva; ao humilde, ama e consola; ao humilde ele se inclina, dá-lhe abundantes graças e, depois do abatimento, o levanta a grande honra. Ao humilde revela seus segredos e com doçura a si o atrai e convida.

O humilde, ao sofrer afrontas, conserva sua paz, porque confia em Deus e não no mundo. Não julgues ter feito progresso algum, enquanto te não reconheças inferior a todos.”

A visita entrou acompanhada pela dedicada serva. Angelita fechou o livro e colocou-o sob as almofadas. Tratava-se de uma dama corpulenta, morena, de grandes olhos nostálgicos, recordando olhos da raça africana. A enferma não a vira jamais! Não se tratava de relações de amizade da família. Ao primeiro exame, porém, compreendeu que aquela mulher sofria. Intimidada, sentindo ainda repercutir no coração as vozes deificas das páginas que lera, fez um gesto, convidando-a a sentar-se.

- Ao que devo a honra da sua visita, minha Senhora?... — perguntou, atenciosa.

A visitante demonstrou indecisão, para em seguida responder, traindo emoção: 

— É tão ingrato o móvel da visita que lhe faço, minha Senhora, que antes de mais nada rogo ao seu coração muita serenidade para me ouvir, e, acima de tudo, o seu perdão para a ousadia em procurá-la e para o desgosto que, estou certa, lhe causarei...

Angelita empalideceu imperceptivelmente, enquanto o coração se lhe precipitava sob o acúleo de penosa angústia, e fitou a visitante, como animando-a a prosseguir.

—Trata-se de seu marido, minha Senhora...
—Estou ouvindo, pode falar...
—... Tenho uma filha de dezesseis anos de idade, a única que possuo, o anjo do meu lar, que já não conta com o amparo de um chefe, pois sou viúva. 

Silêncio desconcertante pesou entre ambas, Os olhos da visitante encheram-se de lágrimas. A palidez da inválida acentuou-se:
—Prossiga, minha Senhora, estou ouvindo... —repetiu, resoluta.

E a dama de olhos melancólicos, qual meteoro que acabasse de destroçar o coração da infeliz esposa de Alípio, explicou, de chofre:

—Minha filha foi seduzida por seu marido...
As duas se entreolharam, depois do que Angelita exclamou, serena, amparada por uma tranquilidade como se dos Céus descessem refrigérios a fim de alentá-la:
—E que espera a Senhora possa eu fazer por sua filha? Há nove anos estou inválida neste leito de dores! Somente a minha morte remediaria a situação de sua filha, pois, infelizmente para ela e quiçá também para mim, o Código Civil Brasileiro não só não adota o divórcio como, ainda que o adotasse, não o concederia a meu marido só pelo fato de ser eu inválida... 
Mas Deus, em sua soberana justiça, ainda não desejou libertar-me deste cativeiro.
—Minha filha é uma criança e será mãe dentro de algum tempo... Pleiteio para ela o direito de ser dotada por seu marido, pois sei que ele possui bens. 
—Porque não se dirige antes a ele, minha Senhora?
—Nega-se a atender-me.
—Dirija-se então ao Juizado de Menores.
—Haveria escândalo... Ele será, certamente, processado pela Justiça, a situação de minha filha se complicaria, ele se tornaria inimigo.
—Que deseja, então, de mim?
—Que o aconselhe, instando para que me atenda, a bem de todos nós. Ousei dirigir-me à Senhora porque ele afirma que é esposa compreensiva.. não o molestando por haver tornado à vida de solteiro.

Angelita meditou por um instante e depois adveio, com desânimo:
—Talvez a Senhora tenha razão em me procurar para tal fim, porquanto, nestes nove anos de tão cruéis sofrimentos, somente restava esse pormenor para me completar o martírio.
Certamente, reanimada pela fragilidade da criatura a quem abordava, a visitante continuou, displicente:

—Quero que ele monte uma casa e se comprometa a amparar minha filha como se realmente fosse casado com ela. A Senhora há-de convir que eu, como mãe...

—Sim, tem toda a razão... Verei se posso fazer o que me pede. Agora, suplico-lhe, por piedade, retire-se, deixe-me em paz...

O resultado de tão ousada quão impiedosa visita não se fez esperar. Informada na mesma tarde pela amiga, que se não encorajara a dirigir-se ao marido para tão singular assunto, Sarita prestou-se a abordá-lo no intuito de evitar à pobre inválida novos choques da mesma espécie, visto que não seria justo que a infeliz esposa fosse imiscuída no melindroso caso. Mas, de ordinário, a pessoa colhida em falta grave, em vez de se penitenciar, como seria honroso, revolta-se contra aqueles que lhe descobrem os erros, portando-se violentamente. Alípio não só repeliu Sarita como, em altas vozes, com ela discutiu, declarando que faria de sua vida o que bem entendesse, torcendo o sentido da advertência piedosa da fiel amiga para repetir que se transferiria definitivamente para a casa da jovem seduzida, a esperar o fruto querido, resultante da união, terminando por lamentar que a esposa vivesse ainda, impedindo-o legalizar a situação com aquela a quem ardentemente queria. 

Entrou no aposento da enferma e confirmou, colérico, o que se passava, acrescentando não admitir censuras; insultou-a cruamente, rogando-lhe que morresse de vez, desocupando um título e um lugar que antes caberia à outra, visto que ela, Angelita, fora fragilmente ligada a ele apenas durante onze meses; que os laços do matrimônio, entre ambos, haviam sido definitivamente rompidos e que ela se desse por muito feliz de ali continuar, naquela casa, onde era suportada apenas pelo critério da caridade.

A jovem esposa não replicara sequer com um monossílabo. Não derramou uma só lágrima! A dor de assim ouvir o ser amado fora demasiada, cristalizando em seu coração a possibilidade de reação. A amiga procurou reconfortá-la tanto quanto possível, não obstante compreender que a desditosa acabara de receber o golpe mortal, pois apenas Sarita permanecia à sua cabeceira, local onde sua própria mãe, feliz entre os demais filhos, só raramente aparecia.

Entrementes, o mau esposo cumprira o prometido. Retirou-se definitivamente do lar, curvando-se, finalmente, à imposição que lhe fizera a genitora da jovem seduzida. Esqueceu, assim, completamente, a esposa inválida, cujas necessidades eram agora supridas por Sarita e um ou outro parente mais prestativo, uma vez que o esposo só de longe em longe se permitia o incômodo de informar-se do que careceria aquela que, a despeito de tudo, usava o seu nome.

Tão lamentável estado de coisas durou ainda dois longos anos, durante os quais, agravando-se o estado da enferma com a irrupção de um câncer interno —consequência do acidente verificado por ocasião da operação e como resultado imediato do choque traumático pela suprema descaridade sofrida do esposo —,seus padecimentos ultrapassaram todas as perspectivas. Até que, por uma tarde tépida e serena de domingo, a sós com a fiel amiga e suas filhas e o velho médico assistente, Angelita desprendeu-se, finalmente, da prisão corpórea, que a detivera na expiação de um mau passado, alçando às moradas invisíveis sob a tutela das amoráveis crianças de Antônio de Pádua, depois de onze anos de um calvário de dores morais cruentas e de lágrimas silenciosas e humildes.

Dramas da Obsessão - A Severidade da Lei - Capítulo IX

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes

Entrementes, Angelita, silenciosa, percebia que o marido de dia para dia mais e mais a deixara no abandono. Readaptara-se à vida de solteiro e até parecia repugná-la, esquecendo-a sem compaixão pela sua desdita, desinteressando-se do dever moral de suavizar-lhe o martírio com afetuosas atenções. 
Passava dias e noites inteiras sem retornar ao lar. Dir-se-ia agora hóspede em sua própria casa! E, ao voltar, era como se a esposa fosse um ser estranho, para com o qual não se sentia obrigado a considerações. Não se lembrava de que ela possuía também um coração, que esse coração o amava profundamente, e ao qual os deveres de humanidade lhe mandariam respeitar e consolar... preocupado, como se aprazia de permanecer, com as conquistas amorosas que se permitia fora do lar. 

Nem as ocultava tão-pouco à pobre criatura chumbada à invalidez. Parecia até mesmo entender ser perfeitamente natural que Angelita o aprovasse com satisfação e alegria, sem indagar se tal situação deixaria ou não de ferir o coração da jovem esposa, que não cessava de amá-lo. Narrava-lhe, displicente-mente, as conquistas levadas a efeito pelos clubes que frequentava. Dava-lhe a ler as cartas apaixonadas que recebia e retribuia. 

Contava-lhe as ligações amorosas que cultivava. Preparava-se para festas e danças em sua presença, pedindo-lhe a opinião sobre a cor da gravata e do cravo a usar na lapela, consultando-a sobre se levaria lenço de seda branca ou creme, perfumado a heliotrópio ou a jacinto, para apoiar, sob a mão, na cintura das damas com quem dançasse, e se o friso dos bigodes seria mais alto ou mais baixo e a linha dos cabelos ao meio da cabeça ou mais ao lado esquerdo.

Era o egoísmo feroz, do coração frio que apenas em si mesmo pensa, e a quem não causava espécie as desditas do coração alheio!

Dizer das horas de torturas morais que padecia Angelita não será certamente fácil tarefa para a capacidade de um estranho. Seus gemidos, porém, o eco pungente dos seus silenciosos anseios repercutiram no Além como súplicas de socorro, para que o Céu descesse em refrigérios para ela, fortalecendo-a contra a desesperação, na dura experiência. E o céu descia, com efeito, nas individualidades das formosas crianças de Antônio de Pádua, as quais, levando-a a adormecer em letargias profundas, alçavam o seu espírito acabrunhado ao seio dos Espaços. E, ali, quais benditos anjos de um novo Getsêmani, a consolavam com dulcíssimos conselhos e visões de arrebatadoras esperanças, revigorando-a para que sorvesse de boamente o fel das próprias amarguras até ao fim das provações, afirmando-lhe, e dando-lhe a ver dentro de si mesma que tão espinhosa, decepcionante quadro de sua existência mais não era do que a irremediável consequência de um ingrato passado reencarnatório, quando, vivendo em Vila Rica sob o nome de Rosa, amada e respeitada por um esposo digno e confiante, atraiçoava a sua fé conjugal friamente, permitindo-se o ultraje de uma infidelidade aviltante com a pessoa do maior amigo da sua casa, aquele Fernando Guimarães de então, cujo Espírito, agora reencarnado, outro não era senão o seu próprio esposo do momento, isto é, o galante Alípio, cujos maus pendores continuavam ainda os mesmos. 

E explicavam ainda as angelicais crianças de Antônio:
— “Será imprescindível, pois, que te resignes, irmã querida, à melancólica situação terrena da atualidade, porquanto é o único recurso existente em teus caminhos para te reabilitares ante a própria consciência! Volta-te, portanto, para Deus, nosso Pai, o qual bastante poderoso será para conceder-te forças para a vitória contra ti mesma.” 

Oração a Maria de Nazaré

Maria mãe espiritual de toda humanidade, saudamos-te cheia de graça e pedimos a assistência para os abandonados. Força para o...