terça-feira, 30 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo XII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes


Três dias depois da denúncia, era sábado, o dia consagrado pelos hebreus aos deveres religiosos. Realizar-se-ia a reunião dos adeptos de Moisés e dos Profetas no local conhecido, e o doutor Timóteo não poderia faltar porque era o intérprete, o que melhor conhecia as intrincadas leis do judaísmo, para instruir o povo.

Desusada movimentação verificava-se na chamada Casa da Inquisição, isto é, na sede da Instituição, pois que o inquisidor-mor, o vice inquisidor, seus adjuntos, a milícia do “Santo Ofício” e até soldados do Rei encontravam-se a postos para a batida daquela noite numa Sinagoga clandestina que acabara de ser denunciada, a fim de se lavrar o flagrante dos falsos cristãos, como eram denominados os infelizes hebreus forçados a uma conversão que lhes repugnava. 

João-José entrava e saía, febricitante, do sinistro edifício, delator por ambição ao ouro, malévolo, possuído de odiosas alegrias ao prelibar o gozo ignóbil de embolsar respeitável quantia após a conclusão do serviço. Até que a noite caiu e começaram a se reunir na dita Sinagoga os judeus cujos corações revoltados procuravam lenitivo na evocação da antiga crença que lhes embalara a infância. 

O doutor Timóteo lá estava, à cátedra, investido do seu ministério de intérprete da Lei... quando pancadas soaram nos portões, repetidas e aterrorizantes, seguidas de arrombamentos de portas com alavancas, barras de ferro, etc., e a invasão dos soldados do Rei e do Santo Ofício. Alguns daqueles infelizes, espavoridos, tentaram a fuga. Mas a casa, inteiramente cercada, era invadida de todos os lados, sem alaridos, sem rumores inúteis, porque a Inquisição era discreta, sabia agir em silêncio, dentro das sombras da noite e a dentro dos muros das suas prisões, sem repercussões perturbadoras da ordem. O pelotão, porém, era comandado, ou orientado, por três dominicanos encapuzados e mascarados, a fim de não serem reconhecidos. Mas, em vendo-os, Aboab, majestoso, altivo, e provando, na hora derradeira, o orgulho da sua raça, reconheceu-os imediatamente e exclamou:

— Oh, sim! Prendei-me, senhor Dom Frei Hildebrando de Azambuja! Agradeço a honra que me concedeis vindo pessoalmente aprisionar o vosso anfitrião e amigo, em cuja mesa vos regalastes de bebidas e comezainas como os porcos o fazem em suas pocilgas! ... Para um inquisidor-mor, a atitude é tão comezinha quanto o é o próprio caráter da instituição e dos seus funcionários! Possuís criados e soldados... Deveríeis antes vos terdes conservado em vosso posto de comando do que no de lacaio de um Rei infame!

Virou-se para os companheiros de ideal religioso e prosseguiu:

— Apresento-vos o inquisidor-mor de Portugal, Dom Frei Hildebrando de Azambuja! A ele ficaremos devendo as desgraças que sobrevierem sobre nós e nossa descendência... Chegai Fausto, Cosme de Mirandela! Chegai sacrílegos e obscenos irmãos, incestuosos e hipócritas, que aviltais a própria crença, ao afirmardes que a professais! Prendei-nos, blasfemos, que desonrais o próprio nome do “Santo dos Santos” (23), ao proferi-lo! 

Ó réprobos dos infernos! Eu vos amaldiçoo do alto desta cátedra sagrada, da cátedra do povo de Israel, que difundiu entre os homens a crença e a confiança no verdadeiro Deus Todo Poderoso, investida de uma autoridade que os milênios não apagam! Amaldiçoo-vos! E, se a alma de um homem se perpetua, realmente, depois da sua morte, tereis a minha e a dos meus filhos — meu sangue e minha carne, que ides sorver e devorar — acompanhando-vos quais sombras vingadoras, que vos perseguirão pela consumação dos evos...

As mulheres presentes prorromperam em prantos e lamentos compungentes, certas do que as aguardava na Casa da Inquisição, enquanto Aboab terminava a maldição:

— “Sei que a fogueira aguarda a mim e aos meus filhos... Mas ouvi, malditos, antes que a tortura dos vossos subterrâneos emudeça a minha língua: — jamais admiti a vossa crença! Odeio-a como odeio a vós outros! Por amor dos meus filhos, apenas, fiz que a aceitei, quando a vossa tirania ma impôs! Porém, desprezo-a como a vós desprezo, porque uma crença que induz os seus adeptos aos crimes e vilezas que praticais não é uma religião, mas a mais absurda e execrável das heresias, cuja cruel atuação será a vergonha da posteridade, que vos há de julgar e condenar como hoje julgais e condenais homens indefesos, vossos compatriotas, que nasceram sobre o mesmo solo e vivem sob a mesma bandeira!”

Disse-o e cuspinhou no chão em direção a eles, com nojo e escárnio, ato que, entre os da sua raça, era a suprema afronta, o mais vil insulto. Não mais logrou, no entanto, sequer o tempo necessário para ultimar o ultraje, porque soldados caíram sobre ele, a um sinal do inquisidor mascarado, que não se dignara pronunciar uma única palavra; manietaram-no, espancaram-no, retiraram-no do interior da casa amarrado a cordas, e, arrastando-o pelas ruas, de encontro às lajes incertas, como se o fizessem a um trapo desprezível, blasfemavam insultos, enquanto os gêmeos de Mirandela, correndo ao encalço dos verdugos que o arrastavam — sinistra comitiva de uma abominação que o homem hodierno não chegará a bem compreender —, vociferavam, excitados, coléricos:

— Poupai-o! Poupai-o! Queremo-lo vivo e bem vivo! Precisamos que ele viva! Bem vivo!...

Todos os demais, surpreendidos em flagrante de. Judaísmo quando já haviam recebido o batismo da Igreja e eram considerados, por esta, cristãos, foram encarcerados nos subterrâneos da Casa da Inquisição. Arrastado pelas lajes qual um trapo inútil, semimorto, ferido, banhado em sangue, o doutor Timóteo viu-se atirado a uma espécie de poço húmido, manietado como se encontrava. O desgraçado sabia que ia morrer, mas não o ouviam lamentar a própria sorte, senão repetir estas pungentes e altivas palavras:

— Matai-me, despedaçai-me, pois sou judeu, com efeito! Mas tende piedade dos meus filhos, que são inocentes e nem conhecem a existência dessa cátedra! Eles são cristãos, nascidos em Portugal, educados por mestres dominicanos! Jamais desobedeceram às leis! Piedade, piedade para meus filhos!...

Abandonaram-no na masmorra soturna, povoada de insetos imundos e ratos vorazes, que logo entraram a atacá-lo por entre mil torturas indescritíveis...

Entrementes, Hildebrando e seus acólitos se reuniram em sessão secreta, radiantes com as prisões efetuadas, a fim de discutirem quanto ao destino a darem ao resto da família Aboab.

— Prendamo-los a todos — incitavam Fausto e Cosme, cujas opiniões eram idênticas em quaisquer circunstâncias. — São da mesma raça... convém exterminá-los de vez, a bem do decoro da nossa legislação religiosa...

— Legalmente não o poderemos fazer, visto que não existem suficientes razões... Ao demais, são duas horas da madrugada... — aparteou alguém da diabólica assembleia, ainda não de todo corrompido.

— A Santa Inquisição age como bem lhe aprouver, pois que é autônoma... e, acima de tudo, houve denúncia de que toda a família vem “judaizando” desde muito, o que é proibido por lei... e esta nos dá o direito de uma devassa em regra no domicílio suspeito... — acudiu Frei Hildebrando, afetando zelos pela instituição, mas a rigor premeditando algo deplorável em torno da infeliz Ester.

— De outro modo, uma vez Silvério aprisionado, assistir-nos-á o direito de confiscar-lhe os bens... - acudiram os gêmeos, ambicionando o que ainda restava da mansão cobiçada.

— Sim! — voltou Azambuja — confiscar-lhe-emos os bens! Aquele miserável judeu é riquíssimo, embora tente convencer que se encontra arruinado... São duas horas da madrugada... Convém devassarmos o domicílio agora, a fim de evitarmos alaridos e escândalos com a luz do Sol... Investigaremos esconderijos onde possam existir comprovantes de heresias e de riquezas... a fim de que algo aproveitemos a tempo... visto ser de lei que seja o Estado que lucre com a confiscação... Quanto àquela jovem... à menina Mariana... Bem... Resolveremos depois o seu destino... Foi educada por irmãs dominicanas... Incumbo-me dela...

Tais vilezas eram comuns. Ninguém aparteou... e o grupo sinistro rumou para o solar judaico, em cujo interior era tudo silêncio e quietação.

Não obstante, velavam ainda os seus habitantes, porquanto, inquietos com a prolongada ausência do seu querido chefe, Ester e os primos pressentiam algo temeroso delineando-se sobre suas cabeças. Subitamente, perceberam vozerio e bulha incomum no pátio da entrada principal. Acorreram, curiosos, às rótulas das janelas e recuaram apavorados: — à luz vermelha e crepitante de tochas sustentadas por pagens batedores, cinco soldados armados e cinco clérigos mascarados com grandes capuzes entravam pela porta principal da residência — como conviria a autoridades — guiados por João-José, que lhes abrira os portões e agora descerrava serenamente a porta do edifício, secundado pela mulher. Espavoridos, os dois jovens, Saulo e Rubem, procuravam ocultar-se pelo interior dos armários, sob as camas e os aparadores, enquanto Ester tentava serená-los e detê-los, exclamando com heroísmo e ânimo varonil:

—Mantenhamos ao menos a dignidade de enfrentarmos o martírio com serenidade para morrermos com heroísmo, sem jamais patentearmos pusilanimidades diante dos algozes! — Ao passo que Saulo gaguejava, trêmulo de terror e de revolta, ante a arbitrariedade que os violentava:

—Não! Não poderão prender-nos a uma hora destas, sem que cometêssemos delitos que justificassem tal violência! Não podem! Não cometerão tal iniquidade! Temos o direito de defesa e justificativas, que a lei nos concede! Tratar-se-á, porventura, de ódio particular, de perseguição oculta, à revelia da lei? Meu pai, ó meu Senhor e pai! Socorrei-nos! Socorrei-nos! Misericórdia, ó Deus Eterno, pois somos daqueles vossos legítimos filhos, da raça dos vossos santos Profetas! ... É a Inquisição que nos vem prender, ó Deus! É a tortura, é a fogueira! O fogo! O fogo! Irão queimar-nos vivos, como fazem aos demais! ... Ó meu pobre irmãozinho querido, Rubem! Foge, Rubem! Foge para qualquer parte, que já estaremos desgraçados! Socorro! Socorro! É a Inquisição que chega! Os frades! Os inquisidores! Deus do Céu, não os dominicanos! ...

Abraçaram-se os dois irmãos, excitados, aterrorizados ante o que viam, derramando copiosas lágrimas, prostrados de joelhos sem bem compreenderem o que faziam, enquanto Ester, junto deles, envolvia-os num só abraço, como desejando protegê-los contra o perigo iminente, pois já os perseguidores entravam violentamente no recinto pela porta aberta, com estrondo, pelo servo infiel. À vista de Ester, tão bela, tão altiva e indefesa entre os primos, moralmente ainda mais frágeis do que ela, os algozes tiveram um instante de indecisão, como se algo em suas consciências se envergonhasse da soez atitude que tomavam, devassando indebitamente um lar respeitável onde poucos dias antes ainda eram recebidos como amigos.

A jovem, porém, reanimada, ergueu-se e, fitando-os com dignidade e brandura, interrogou:

— Poderão informar-nos, senhores, da razão desta violência? ...

Frei Hildebrando aproximou-se, mascarado, deixando-se reconhecer, no entanto, pelo indisfarçável tom vocal:

— Descansa, querida menina... — exclamou, afetando bondade assaz suspeita —, e confia em nossa proteção... nada desagradável sucederá a ti se concordares em ser razoável e obediente... pois apenas desejamos a tua felicidade pessoal... A lei, porém, impõe-nos o ingrato dever de uma busca neste domicílio, porque houve denúncia de que aqui se pratica o judaísmo...

Aproximou-se mais e tocou-a no braço, num gesto ousado, protetor. A jovem desvencilhou-se e ele prosseguiu:

— Ficarás sob minha tutela, no Convento das boas dominicanas... Nada terás a recear do tribunal da nossa Santa instituição, afianço-te... porque o tribunal sou eu...

— Não, nunca! — revidou ela com ousadia. — Prefiro antes a prisão e a morte com os meus, a tortura, a fogueira, apesar de ser cristã!...

Correu para os primos, com eles se abraçando, enquanto riam, desdenhosos, os sinistros invasores. Eis, porém, que fora iniciada a inspeção no domicílio. Revolveram-se armários, cofres, arcas. Em verdade, estabelecia-se o saque à revelia da lei, pois, ambiciosos e avaros, convinha sempre aos magnatas da Inquisição invasões noturnas dessa natureza, a fim de burlarem a lei civil ou o governo, no tocante aos bens que por este seriam confiscados após a condenação, cerimônias estas levadas a cabo invariavelmente sob rigorosa formalidade, dita ou considerada legal. Mas, do que encontravam, então, de valor, Hildebrando e seus comparsas se apossavam como quaisquer roubadores inescrupulosos, afirmando tratar-se de bens heréticos e macabros, que a “piedade cristã” aconselhava serem convertidos em espórtulas às igrejas e aos desprotegidos da sorte, a fim de contribuírem para o alívio das almas dos seus infiéis possuidores, que se achavam caídos em pecado mortal. João-José insistia junto deles, insofrido e excitado:

— Procuremos no jardim as provas de heresia, Reverendíssimos! É no chafariz do tanque que se encontra o esconderijo! Existe lá o livro herético dos judeus, o qual estes Aboabs veneram e discutem aos domingos, como fariam nas sinagogas...

E realmente encontraram, na arca dissimulada no pedestal de mármore do chafariz, o livro tradicional da raça, em cujas venerandas páginas toda a família, desde os remotos ancestrais, sorvia energias morais, a consolação espiritual tão necessária nas horas deprimidas pela angústia, como nos dias dolorosos de expectação ante o fim trágico que finalmente chegava. O próprio Rubem, premido pelas odiosas imposições da sinistra comitiva, houve de desvendar o segredo da abertura, visto que não souberam decifrá-lo, os homens do “Santo Ofício”. 

E fê-lo banhado em lágrimas o infeliz rapaz, a si mesmo considerando traidor por haver deposto nas mãos dos mais terríveis inimigos da sua raça o penhor religioso venerado por todos os hebreus. Frei Cosme esbofeteou-o, vendo-o relutar em entregar o precioso texto. E o pobre adolescente, irritado, os nervos exaustos por uma expectativa prolongada e uma revolta exacerbada, investiu para ele, constatando que lhe tomavam o livro; e, tentando revidar a ofensa, cuspinhou-lhe no rosto ainda mascarado, pregando-lhe ainda os dentes com força na mão por que fora esbofeteado. Não concluiu, todavia, a expansão dos seus revides. 

Viu-se tolhido pelos brutais apaniguados do “Santo Ofício”, em um minuto amarrado com sólidas cordas, enquanto Ester, desfeita em lágrimas, corria intentando socorrê-lo, e Saulo investia, defendendo-o. Mas, igualmente no curto espaço de alguns instantes, viu-se a jovem amordaçada e amarrada, carregada pelos braços possantes de um sequaz de Hildebrando, metida dentro de uma carruagem fechada, onde em seguida tomou lugar este mesmo célebre e cruel inquisidor, rodando para local ignorado por ela. Dizia-lhe ele, no entanto, aos ouvidos aterrorizados, emocionado e arrogante:

— Acalma-te, querida menina! Nada desagradável te sucederá, já to disse! Sou o homem mais poderoso de Portugal! O próprio rei curva-se em minha presença! Amo-te! Amo-te e quero-te como um insensato, como um louco! E tu estás sob minha proteção! Serás grande, tão poderosa qual uma rainha, se o desejares! Apenas uma condição imponho: — sê minha! Consente em me amar também um pouco!...

E rodava a carruagem pelas ruas de Lisboa, imersa em trevas... Ficavam para trás, encobertos pelas sombras do pretérito, o lar que ela tanto amava, a família, o amor, a felicidade... e Saulo e Rubem, manietados quais ferozes malfeitores, espancados, arrastados como se mais não fossem do que trapos inúteis, que se incluiriam no monturo... (24) Mas, partindo, Ester pudera ainda observar que Saulo gargalhava e chorava, bramia e suplicava, afigurando-se que o infeliz adolescente perdera a razão, não resistindo à tensão traumática de uma rude e longa expectativa de desgraças finalmente verificadas. Alguns minutos depois, a jovem hebreia não mais pôde perceber o que se desenrolava ao redor de si e tão pouco o local para onde a conduziam, pois desmaiara ao lado de Hildebrando, vencida por violenta emoção.

(23) Deus.

(24) Não era comum a prisão de filhos menores de judeus. O fato aqui narrado parece tratar-se de vinganças pessoais. No entanto, a Inquisição deixava-os, geralmente, ao mais completo desamparo, segundo reza a História.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo XI

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes


Era domingo, à tarde. A família Aboab encontrava-se reunida no amplo jardim do solar, sob o frescor das oliveiras evocativas, cujas galhadas se estendiam em proteção aos canteiros de plantas mimosas, contra os rigores do Sol. Decorria o verão e, desde que se tornaram suspeitos às leis da Inquisição, os Aboabs já não conseguiam visitas nem contavam com os comensais, visto que assim se pautava a sociedade de Lisboa em torno dos infelizes hebreus, pela época. Os jardins do solar judaico eram interiores, como sabemos. 

A frente da habitação, murada e como fortificada, havia pátios atijolados, como nas casas nobres, varandas e abrigos para carruagens, viaturas, “cadeirinhas”, etc. No interior, porém, ficavam pomares e jardins, sendo estes localizados no centro da habitação, a qual, toda avarandada, ao gosto oriental, lembraria também claustros conventuais. Comumente a família se reunia ali, à tarde, para confabulações íntimas ou, à sesta, para ouvir as melodias entoadas pela doce Ester. Era igualmente o local preferido para conversarem no seu dialeto tradicional, acerca da história da raça. E Timóteo, então, tomando a palavra, recordava os antigos patriarcas de Israel, narrando aos filhos atentos as grandezas e vicissitudes do seu povo. 

Lia-lhes, depois, contrabalançando o ensino fornecido pelos mestres dominicanos, o Talmude — o livro da sabedoria — ou as próprias Escrituras, e, comentando-os, como doutor da lei que era, instruía quanto podia a família na religião dos seus antepassados, o bastante para infundir-lhe no caráter e destilar no coração aquele orgulho de raça, o exclusivismo sombrio e rígido que produziu a maior vicissitude, dentre tantas, que sofreu o povo israelita, mas que também forneceu o padrão inconfundível do seu valor característico.

As maiores cautelas eram tomadas em tais ocasiões, conforme dissemos para trás. E conquanto estivessem certos de que os serviçais não lograriam atingir aquele recinto, era bem verdade que se fechavam prudentemente, isolando o jardim e assim evitando a possibilidade de serem surpreendidos por quem quer que fosse. Com a prisão de Joel, já desorientados e convencidos de que não tardaria o momento em que eles próprios seriam igualmente detidos pelos sequazes inquisitoriais, seu único lenitivo era reler os Profetas e reestudar as consolações contidas nos livros tradicionais da crença, e o faziam isolados no jardim. 

Bem ao centro deste, e protegido pelos tamarindeiros e as oliveiras, existia um grande tanque com formosa coluna e taça de mármore encimada por três canais em feitio de tulipas artisticamente dispostas, dos quais esguichavam as águas, fazendo transbordar a taça para manter sempre límpido o pitoresco lago. 
Precisamente no pedestal da coluna, cujas bases roçariam a flor das águas, havia um bloco de mármore em forma de grande caixa, mais alta que larga, e cujas paredes artísticas encobriam certa portinhola, como se o bloco ou caixa nada mais fosse do que um esconderijo, cofre de segredo para algo muito valioso que necessitasse ser negado a vistas estranhas. 
O detalhe passaria despercebido a todos os olhares e investigações, pois tais modelos de chafarizes eram comuns e ninguém suspeitaria tratar-se aquele de um estratagema para algo encobrir. Três passagens estreitas, como graciosas pontezinhas, ligavam o bloco de mármore ao terreno do jardim, enfeitando a peça que, realmente, se mostrava interessante.

Nessa tarde de domingo, tristes e apreensivos, reuniram-se os Fontes Oliveira em volta do tanque, no intuito de mutuamente se reconfortarem na intimidade doméstica. Ester entoava aos ares, como em surdina de prece, acompanhando-se à cítara, o Salmo 70 de David, e sua voz doce, magoada, era como a tradução das lágrimas dos próprios filhos de Israel flagelados desde milênios por opressões constantes. Choravam o velho Timóteo e os dois filhos, Saulo e Rubem, a fronte curvada, o coração cruciado e inconsolável, o ânimo já desfalecente ante a persistência e fereza das provações impostas pela violência da Inquisição, enquanto Ester soluçava aos sons enternecidos do suave instrumento:

— “Em ti, Senhor,
Tenho esperado longamente... 
Não seja eu, jamais, 
Por ti esquecido...
Livra-me, Senhor,
Na tua bondade e justiça,
De todos os males
E de todos os perigos...
Põe-me a salvo, meu Deus!
Inclina sobre mim
Teu coração de Pai,
E salva-me
Destes atrozes males,
Porquanto,
A minha firmeza
A minha Esperança 
E o meu refúgio 
És tu!
Deus meu!
Livra-me da ira 
Do inimigo pecador!
Daquele que procede 
Contra a tua lei!
E também 
Do que pratica
Tanta e tanta Iniquidade!
Porque tu, Senhor,
És a minha fé
E a minha Paciência!
Tu, Senhor,
És a minha Esperança 
E o meu Amor!
A minha Alegria 
E a minha Fé!
E espero em Ti, Senhor, 
Desde os dias tão distantes, 
E tão ditosos, 
Da minha infância 
E da minha 
Mocidade...

Quando os acordes maviosos cessaram, o pequeno Rubem, a um sinal do pai, encaminhou-se para uma das três pontezinhas do tanque, não sem investigar, com olhos temerosos, os recantos do círculo onde se achavam, as galhadas dos arvoredos, o alto dos telhados e dos muros e os tufos de arbustos do jardim. Saulo advertiu:

— Não há cá ninguém, eu investiguei...

Enquanto Ester ajuntava:

— Examinei todas as portas: estão trancadas pelo lado de cá...

E Timóteo intervinha, desesperançado:

— Pouco importa que nos descubram agora ou mais tarde... Joel já lá está... e poderemos ir ter com ele... Estamos todos irremediavelmente condenados... A prisão, a tortura e a morte rondam nossos passos... Não tardarão a nos aniquilar de vez... tenhamos ou não infringido a lei...

Reanimado pelo fatalismo pressago do pai, o moço judeu encaminhou-se para o bloco de mármore do pedestal do repuxo, acionou o segredo existente, fazendo mover a parede da caixa, e, introduzindo o braço na cavidade, retirou um grande e precioso livro escrito em hebraico — o Talmude —, o livro precioso da sabedoria de Israel, acompanhado de velhos pergaminhos dos livros dos Profetas, O bloco de mármore seria, portanto, um simulacro da arca sagrada do povo hebreu, onde se guardavam das profanações exteriores os ensinos dos filhos de Abraão, de Isaac e de Jacob.

Timóteo pôs-se a ler e comentar, para os filhos, o tema do dia. Ao terminar, concedeu a palavra a Saulo e a Rubem, respectivamente, como de praxe nas igrejas judaicas, onde a palavra é concedida a qualquer que dela queira usar, excetuando-se as mulheres, que não tinham o mesmo direito. No entanto, enquanto assim cumpriam seus deveres religiosos, um fato marcante para suas vidas começou a desenrolar-se no próprio recinto de sua residência, sem que, todavia, nenhum dos presentes sentisse a mais leve suspeita, pois continuaram a “judaizar”.

João-José, que se conservava alerta a todos os detalhes da vida dos amos, desejou verificar o que poderia tanto entretê-los sob o frescor dos arvoredos. Tentou espioná-los sutilmente, penetrando dependências vedadas aos criados, para atingir o jardim que, como explicamos, era interior, como num claustro conventual. 
Seria, porém, temerário o intento, visto que poderia ser descoberto. Suspendeu-se, então, ao telhado do abrigo das carruagens e viaturas, posto no pátio de entrada. Passou-se daí para o telhado da casa propriamente dita. Arrastou-se como pôde, ocultando-se por entre as chaminés e os rendilhados arquitetônicos, alcançando, finalmente, um terraço de onde poderia contemplar as cenas e até ouvir os debates e conversações, sem ser notado. Ornado de balcões de alvenaria em forma de graciosas colunas, tão do gosto dos antigos mouros, esse terraço oferecia excelente posto de observação, O espião conservou-se abaixado e tudo presenciou, inclusive o esconderijo do livro venerado pela família.

Alguns dias depois, plenamente informado de todos os passos e atos de Silvério Fontes Oliveira, apresentou-se o espião aos seus inquisitoriais chefes e lançou a denúncia terrível, cujas repercussões ainda nos dias presentes lhe torturam a consciência, visto que ainda se debate o seu Espírito contra os abomináveis complexos que tal vileza ocasionou para seus destinos futuros.

Silvério Fontes Oliveira — denunciava o servo traidor —, que se afirmava fiel à Santa Igreja, que se batizara em ato solene, recebendo as puras águas lustrais; que recebia, periodicamente, a sagrada Eucaristia, atraiçoava os juramentos pronunciados, como a confiança da mesma Igreja, pois continuava praticando o judaísmo, não apenas dentro do próprio lar, pervertendo os filhos, que se educavam sob os cuidados de devotados religiosos, mas também chefiando uma Sinagoga oculta, como Rabino que fora, rodeando-se de cristãos recém-convertidos para a prática de mil inconveniências condenadas pela Santa Inquisição. E não era só: — a esta mesma insultava, dela maldizendo e execrando-a em casa, em presença dos filhos e dele próprio, João-José, ou durante as concentrações na Sinagoga, criticando e abominando igualmente os ilustres e abnegados representantes do “Santo Ofício”. Forneceu ainda, o delator, as necessárias informações para ser colhido o flagrante de heresia e desrespeito à autoridade nacional. 
E nada esqueceu que pudesse acirrar o furor dos inquisidores, que, sedentos de sangue e represálias, se banhavam em satânico prazer sempre que lhes fosse dado estender as garras para triturar indefesas criaturas, cujo crime único seria possuir crença religiosa diferente daquela que seus algozes entendiam ser a única verdadeira e divina.

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo X


Yvonne do Amaral Pereira

Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes      


Dissemos de início que Timóteo Aboab fora Rabino, mas que, forçado a abjurar a crença dos seus antepassados, tornara-se católico romano, ou fingia sê-lo. 
Batizara-se, curvara-se a todas as exigências da Igreja, para o caso da conversão, como diariamente faziam muitos descendentes da raça hebraica. Todavia, se não é lícito impor sentimentos de quaisquer naturezas a quem quer que seja, o sagrado sentimento da fé religiosa  superior a todos os demais que empolgam o coração humano, será, com efeito, o mais difícil, senão impossível, de ser imposto. A Igreja, impondo outrora o jugo das conversões violentas, raramente conseguia crentes sinceros para o seu culto. Fazia dos conversos, quando muito, adeptos hipócritas, agregados por conveniência, porquanto os desgraçados, perseguidos até à desesperação, aceitavam o adotarem o Catolicismo, abjurando a crença que lhes era própria, na esperança de viverem em paz e salvaguardarem a vida e a honra da sua descendência, o que nem sempre conseguiam, pois a perseguição continuava por suspeitas de infidelidade à crença adotada. 
No íntimo, porém, a maioria desses convertidos detestava não apenas a Igreja como até o próprio Cristianismo, ao qual não compreendia senão através dos feitos abusivos da clerezia, muitas vezes mais herege do que mesmo aqueles a quem perseguia. Quando muito, os mais sagazes e pensadores dentre os convertidos, portadores de boa vontade e também habituados ao jugo farisaico da sua própria grei, faziam ao Cristianismo, que não compreendiam, justiça idêntica à que faziam ao profetismo de Israel, discernindo que — assim como o farisaísmo judeu corrompera a verdadeira crença de Israel, ultrajando-a com a lama das paixões pessoais, exercendo-a até mesmo com finalidades políticas, incompatíveis com a respeitabilidade e doçura dos santuários, assim também o clericalismo católico-romano desfigurara a legítima essência cristã, por lhe assentar o vírus de arbitrariedades e crimes, que em seu nome cometia, contrariando-lhe os princípios e as finalidades. O doutor Timóteo, contudo, não era dos que faziam tal justiça. 

E conquanto até então não se revelasse um mau caráter na verdadeira expressão do termo, era certo que os longos infortúnios, as desgraças suportadas em silêncio, as humilhações e mil desassossegos cavaram diariamente, em seu coração, a revolta sombria e intransigente, o abismo irredutível entre os seus próprios sentimentos de israelita e o Cristianismo, responsabilizando, portanto, a Doutrina do Cristo pelo mau uso que dela faziam pretensos adeptos.

Da mesma, infinitamente mais hereges e nocivos à Humanidade do que os próprios a quem torturavam para converter. E, assim se portando, mais o antigo Rabino se devotava à sua primitiva crença, continuando a praticá-la ocultamente, não obstante a conversão ao Catolicismo e à prática exigida pelos luminares clericais.

Ora, mau grado à vigilância dos inquisidores, existia em Lisboa uma sinagoga exercendo funções quase normais. Aparentemente, tratava-se de residência particular, com acomodações para comércio, e realmente ali existia abastada família judaica, considerada, havia muito, realmente convertida à fé católica romana. Entretanto, aos sábados realizavam-se ali cerimônias do rito hebreu e comumente falava à cátedra o antigo Rabino Aboab. E isso mesmo levavam a efeito, os pobres hebreus, depois de terem assistido a missas, pela manhã, de se aspergirem com“agua benta” e receberem as respectivas bênçãos do arcebispo e seus coadjuvantes. As reuniões, no entanto, somente se realizavam à noite e eram pouco frequentadas, a fim de não levantarem suspeitas. 

Os fiéis se obrigavam ao revezamento, para que mais sutilmente todos se permitissem ao culto que amavam. Então, discutiam os assistentes pontos importantes das Escrituras ou do Talmude e programas de defesa contra as hostilidades de que eram vítimas; maldiziam os cristãos, bradavam aos Céus por entre lágrimas, reclamando proteção ou vinganças contra as atrocidades que suportavam; concitavam-se à perseverança na lei de Moisés e no ensino dos Profetas; intrigavam, atiçando ódios contra os perseguidores; planejavam fugas e até conspirações e assassínios, os quais jamais chegavam a realizar, e prometiam, uns aos outros, sob solenes juramentos, por si próprios e suas descendências, o culto eterno a Israel. Na realidade, entretanto, eram inofensivos, grandemente sofredores, e longe estavam de ombrear com a maldade e a vileza de um Hildebrando de Azambuja, um João de Meio e seus comparsas comuns (22). 

Distribuíam esmolas aos domingos, à porta das igrejas, afetando uma piedade religiosa que não sentiam... e o faziam por observarem duas finalidades: — tradição do rito hebreu, que ordenava distribuição de pão aos pobres, à hora dos ofícios considerados sagrados, e exibição. Para apreciações dos seus eternos observadores, de uma virtude que conviria fazer passar por inspirada em princípios cristãos, mas que não passava de automatismo farisaico.

Espionando sempre, o novo criado João-José descobriu a sinagoga clandestina, acompanhando, imperceptivelmente, o amo nas escapadas noturnas periodicamente realizadas, pois, como sabemos, funcionava aquela cátedra mosaica a adiantadas horas da noite, graças ao rigor das circunstâncias. Desejando, porém, cair definitivamente nas boas graças dos ilustres mandatários do “Santo Ofício”, o pretenso judeu espanhol, agora espião católico, não participara seus inquisitoriais senhores da importante descoberta, esperando algo mais particular, implicando também o resto da família, dadas as vantagens existentes para as finanças próprias no fato de apontar a família toda judaizando acobertada pelo batismo e suposta conversão. 

Continuou, assim, espionando os pobres amos, os quais, supondo-o servo leal e sofredor, como eles próprios vítima de injustificadas hostilidades, nem sempre se acautelavam devidamente, como seria de bom aviso em face de um estranho admitido no convívio da família. E transcorriam os dias, cientificando-se João-José e sua mulher do que faziam os amos, do que falavam, das lágrimas que choravam, das esperanças que os reanimavam ou do desânimo que os abatia... e, no entanto, não se compadeciam deles...

(22) João de Meio — outro célebre inquisidor de Portugal da mesma época.

domingo, 28 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo IX

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes      

      

Nesses afastados tempos, desoladores e atormentados, nenhuma família judaica conseguiria serviçais domésticos, ou de qualquer outra espécie, pois nenhum cidadão, por miserável que fosse, se prestaria a criado em residências de tais famílias, ainda que estas fossem já batizadas ou convertidas, e por mais altamente remunerado que pudesse ser.

Teriam, portanto, de se utilizar da escravatura os pobres judeus, escravatura que tanto seria africana como também moura, cigana, pária, etc., conquanto o número de escravos fosse geralmente insignificante. Ora, na bela mansão judaica existiam três escravos para toda a família, dado que seria difícil adquiri-los pela época, e cujas crenças religiosas não interessariam aos zelos governamentais, por se tratar de criaturas havidas como realmente inferiores, à parte da sociedade. Tais zelos se empenhavam particularmente na perseguição a judeus. 

Todavia, na residência em apreço eram eles bem tratados, remunerados e não escravizados, viviam alegremente, desfrutando horas de recreio e parecendo estimarem seus senhores. Efetivando-se, porém, o incidente entre o jovem Joel e Frei Hildebrando, os três escravos, espavoridos com o que a eles próprios poderia acontecer, fugiram de seu senhor sem mais delongas, desaparecendo sem que o amo se animasse a tentar meios policiais para encontrá-los, fazendo-os retornar ao domicílio. A situação interna, por isso mesmo, sofrera alterações sensíveis, forçando a delicada Ester a desempenhos rudes e cansativos, não obstante o auxílio afável dos dedicados primos Saulo e Rubem. 

Alguns dias após o interrogatório sofrido pelos Fontes Oliveira, e ainda se encontrando a mansão destituída de serviçais, apresentaram-se a Timóteo um homem e uma mulher. oferecendo-se como criados ou mesmo escravos, pois não faziam questão de subsídios e apenas desejariam alimento e pouso em troca dos serviços prestados. Vinham de longe — afirmavam —, das bandas da Espanha, banidos do próprio lar pela perseguição inquisitorial de Carlos 5º, e necessitavam ganhar honesta e discretamente o próprio sustento para se ocultarem o quanto possível, a fim de se recuperarem para a retirada que desejavam empreender por via marítima, em demanda de terras menos assoladas pela crueldade. Eram judeus espanhóis — disseram — e falavam o dialeto comum à raça, o que, para o crédulo Rabino, seria o mais seguro documento de apresentação. Confiante, o doutor Timóteo admitiu-os sem tardança, instalando-os convenientemente, jubiloso por ficar Ester a coberto de tantas rudes fadigas. 

O homem, dizendo-se descendente de árabes, dir-se-ia antes um cigano. Sua curiosa indumentária, absolutamente diversa das usadas por judeus, não despertou a atenção de Timóteo, habituado a ver disfarces de toda espécie entre seus companheiros de crença. Usava, como os ciganos, calções curtos, de tecido listrado, meias compridas ajustadas aos calções à altura dos joelhos; grandes sapatos de solas de madeira, camisa branca, de mangas largas atadas aos pulsos e colete em veludo escarlate bordado a ouro; faixa azul à cinta, lenço listrado à cabeça, uma argola dourada pendente da orelha esquerda, recordando, com efeito, ciganos mouros ou o estado de escravatura entre alguns povos orientais. Chamava-se João-José, simplesmente, era vaidoso e julgava-se belo e irresistível, com seus grandes olhos de oriental e os bigodes luzidios, não obstante o defeito físico que apresentava, pois coxeava sensivelmente de uma perna.

O leitor entreviu João-José nos dias do século XX reencarnado na pessoa de Alcina, filha de Leonel, suicida como seu pai, numa existência em que se desejou ocultar, sob formas femininas, de seus implacáveis obsessores, ou seja, os antigos amos do século XVI.

Não obstante, marido e mulher nem eram verdadeiramente judeus nem verdadeiramente árabes, porque ciganos, que viviam da rapinagem e da traição, servindo ao mal a soldo de quem melhor os remunerasse. Não passavam, por isso mesmo, de fiéis espiões da Inquisição, com a detestável incumbência de observar os judeus convertidos e denunciá-los ao “Santo Ofício”, desde que colhessem um flagrante qualquer incompatível com as recomendações usadas pelas arbitrárias leis inquisitoriais. Hildebrando de Azambuja, odiento e cruel, encaminhara-os para a mansão Aboab, tudo dispondo da melhor maneira para que não fossem suspeitados do verdadeiro fim por que buscavam empregar-se. 

Não o foram, com efeito. Timóteo e os filhos em ambos confiaram, abrindo-lhes o lar, penalizados, supondo-os igualmente perseguidos. Todavia, jamais os admitiam às confidências ou à intimidade, mantendo-os a distância conveniente e digna. João-José, assim sendo, espionava-os quanto possível, não perdendo jamais oportunidades de lhes ouvir as palestras íntimas e medir atitudes, a ver se incorriam em alguma falta prevista pelo tribunal da Inquisição. Nada interessante descobrindo que Frei Hildebrando já o não soubesse, perseverava no odioso papel, impaciente pelo dadivoso momento em que pudesse apresentar ao ilustre dominicano a nova de qualquer ação que revelasse fidelidade à crença de Israel, praticada pelos patrões. Era remunerado para o serviço... e a descoberta de uma nova infração resultaria para ele em vantajoso prêmio...

Entrementes, chegara ao infeliz hebreu a nova acerba de que seu primogênito, reconhecido e detido pela milícia inquisitorial já em território espanhol, rumo à Itália, fora reconduzido a Lisboa e encarcerado por ordem do Inquisidor-mor, o mesmo sucedendo a seu pajem, o velho Gabriel. Desenvolveu-se, então, um processo em regra contra o infeliz jovem, visto que, efetivamente, ele errara procurando fugir e burlando autoridades com passaportes falsos, atitudes contraproducentes que redundaram em irremediáveis agravantes para a sua situação, dificultando a defesa que o pai impetrava a seu favor. 

Em vão recorrera este novamente aos préstimos de Maria de Faro, acossado pela desesperação da causa, pois a desleal Senhora, receando o desagrado do ilustre Azambuja, abandonara os amigos à própria sorte, negando-se a qualquer tentativa a seu favor. Os advogados de Aboab, hebreus recém-convertidos, como ele, visto que outros que não estes não aceitariam causas de defesas de outros hebreus, convertidos ou não, faziam o que lhes estava ao alcance. Exigiam, no entanto, honorários e recompensas escorchantes, dado que existiam sempre grandes perigos em se bater alguém por um hebreu acusado pelo tribunal da Inquisição, ainda mesmo quando fosse este já batizado e considerado cristão. Frei Hildebrando e seus comparsas Fausto e Cosme exerciam pressões desesperadoras, como sempre, uma vez que do feitio de tais caracteres era a crueldade contra as indefesas vítimas que lhes caíssem nas garras. 

O primeiro propusera mesmo, a Silvério, a liberdade de Henrique em troca da esplêndida mansão e da pessoa de Ester, que, afirmava ele, seria internada num Monastério a fim de trabalhar pela salvação da própria alma, como cristã revoltada e relapsa que era considerada. Mas, sem sequer participar à sobrinha a indignidade da proposta, o velho Rabino rejeitou a oferta, certo, porém, de que cara lhe custaria a rejeição, acedendo, no entanto, no quesito relativo ao imóvel, pela libertação do filho. Fausto e Cosme, por sua vez, propuseram a entrega da prataria restante no solar, dos cristais e objetos de arte que ainda restavam, quadros de grande valor artístico, pintados por Joel inclusive, em troca da proteção de ambos para uma garantia de fuga de toda a família em momento azado. 

Esperançado, ante a tormenta em que se sentia soçobrar, o indefeso Rabino aceitou a proposta... e a velha e aprazível mansão, cobiçada desde muito por tantas altas figuras, foi destituída dos seus preciosos adornos, enquanto aguardavam o momento da prometida fuga para a entrega do edifício ao desumano Azambuja...

A situação geral era, assim, aflitiva, desesperadora, quando, subitamente, os acontecimentos se precipitaram em torno da desgraçada família, desde treze anos passados mantida em incansável observação por parte de seus intransigentes inimigos. 

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo VIII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes      

Ao contrário do que se previra, passou-se a manhã daquele dia e também a tarde sem que nenhumas novas adviessem de Frei Hildebrando ou de seus agentes. A expectativa era asfixiante na residência dos Aboabs. Temiam estes que, informados da súbita partida de Joel, seus inimigos investissem represálias contra qualquer outro membro da família. Em vão entre os Salmos, cuja doçura tanto bem lhes faziam à alma, Ester escolhera algo mais reconfortante para reerguer as energias morais da família que sofria, além da expectativa torturante, também a incerteza da sorte do filho querido, que se arrojara a uma temerária aventura. 

A própria jovem, habitualmente serena e resignada, agora já não se conseguia reanimar, encorajando-se através da fé ardente depositada no Criador de Todas as Coisas e naquele doce Mestre que descera dos Céus venturosos para padecer pela regeneração dos homens. Viram-na o dia todo debilitada e arredia, sucumbida em prantos, o que levou o desalento ao coração de cada um. Joel era o seu suave anelo, a esperança e a alegria das mais caras aspirações da sua alma, e a ausência desse ser tão querido, os perigos que o ameaçariam durante a longa viagem levavam ao seu coração o temor e a angústia, deprimindo-lhe as últimas energias para continuar lutando contra a adversidade. À tarde do segundo dia, no entanto, dirigiu-se a ela o tio e disse, afetuoso e apreensivo: 

— Minha querida filha, temo por ti mais do que por nós outros, nas circunstâncias em que nos encontramos... O “Santo Ofício” de nada nos poderá acusar, Joel está bem longe e, ao demais, temos advogados junto à Corte para defender nossos direitos. Sabemos, porém, que, sem a vigilância de teu primo e com as disposições equívocas de Hildebrando a teu respeito, corres grandes riscos de sofrer surpresas desagradáveis ou mesmo vexames... Mandei atrelar a “cadeirinha” (19) a fim de visitarmos tua madrinha e deixá-la a par do que se passa... 

Há-se revelado ela nossa fiel amiga, sendo mesmo contrária ao movimento hostil continuamente verificado contra nossa raça, e já por várias ocasiões, como não ignoras, há também oferecido préstimos a teu favor... Ao demais, sendo espanhola e não portuguesa, não terá, certamente, grandes interesses em nos detestar gratuitamente, apenas para satisfazer a Inquisição, não obstante a Espanha igualmente perseguir os de nossa condição... Apelarei, portanto, para o seu coração maternal, rogando aceitar-te em sua casa até que os horizontes se desanuviem em torno de nós...

Ester era humilde e obediente. Respondeu a seguir, embora o coração se lhe confrangesse à ideia de se afastar do próprio lar: 

— Pesa-me deixar-vos em momento tão crítico, meu tio... mas se assim deliberais será porque assim será o que melhor convém... e aprovarei vossa resolução... 

Subiram para a pequena viatura, mais cômoda e usual para pequenos percursos, e partiram para a residência da Condessa Maria de Faro, em cujo caráter confiavam de todo o coração. 

A Condessa Maria era mulher de quarenta anos de idade, valorosa e digna, não existindo até então, no conhecimento público, nenhum deslize que a levasse a desmerecer do conceito que desfrutava na sociedade e na intimidade dos amigos. Espanhola de nascimento, mas consorciada com um fidalgo português, vivia desde muito em Portugal, sendo amplamente relacionada entre a nobreza e até mesmo entre a realeza. Confessava-se contrária às hostilidades infligidas aos hebreus, fossem portugueses ou estrangeiros, e, em presença destes e dos amigos íntimos, atacava com veemência as leis que estabeleciam tanta desumanidade contra criaturas indefesas. Não seria de admirar que tão digna Senhora assim se conduzisse, visto que, por aqueles atormentados tempos, muitas vozes beneméritas bradavam contra a Inquisição, censurando e até execrando as suas façanhas. 

A Condessa, porém, em verdade, era mais loquaz e leviana do que realmente sincera naquilo que afirmava e, a despeito de, realmente, não desprezar a raça judaica e dela se compadecer, não se esquecia jamais de também testemunhar considerações aos inquisidores, esmerando-se em amabilidades sempre que possível. Levando Ester à pia batismal, quando da obrigatoriedade imposta aos judeus, e defendendo, por mais de uma vez, não só a afilhada como toda a família desta dos choques circunstanciais provocados pelo fanatismo partidário, cativara de tal sorte a confiança dos Aboabs que por mais de uma vez fora também ela a sua confidente e conselheira. Quando do desejo de Joel e Saulo se transferirem para Roma, no intuito de fugirem às opressões diárias que suportavam, tencionavam suplicar-lhe o valor, ainda uma vez, para lhes conseguir a necessária licença, caso falhasse o concurso dos supostos amigos inquisidores. Entretanto, como vimos, o funesto incidente, entre estes e o primogênito da casa, transformou a programação do velho Rabino, sugerindo novos passos na via angustiosa que palmilhava. 

* * * 

A Condessa Maria de Faro reencarnada se achava, nos primeiros decênios do século XX, na pessoa sofredora e humilhada da esposa de Leonel, o suicida por quem todo o nosso penoso trabalho era realizado, ao passo que o próprio Leonel, por sua vez, conforme revelação inicial, era a reencarnação de Hildebrando de Azambuja. Para a boa compreensão da moral desta verídica história, rogamos ao leitor não perder de vista este precioso detalhe. Feito o que, continuaremos ouvindo a narrativa do Guia Espiritual de Leonel. Continuou ele: 

—Depois de receber a afilhada com visíveis demonstrações de afeto e alegria, a Condessa de Faro fê-la encaminhar-se para os aposentos que, lhe eram destinados, concedendo-lhe uma criada para os serviços particulares, tal se se tratasse de uma fidalga a quem hospedasse. 

—Aqui estarás tão bem como em tua própria casa, querida Mariana — afirmou ela à recém-chegada, por entre sorrisos amáveis, pois a digna Senhora era sempre pródiga na distribuição de sorrisos —, e nada te há-de faltar... tua presença traz-me um grande prazer... será como se aqui estivesse a minha Emília, que se foi para a Espanha após o casamento... peço-te que me consideres a tua segunda mãe... pois vejo que, com efeito, muito careces do amparo e dos afagos de um coração materno... 

Encantado, o antigo Rabino osculou-lhe a destra gratamente, bem certo de que tivera a mais feliz inspiração dirigindo-se a tão prestimosa dama, enquanto Ester se limitava a sorrir acanhadamente, o coração confrangido de incertezas. Uma vez a sós com a fidalga, o doutor Timóteo pô-la a par dos ingratos sucessos desenrolados em seu lar pela tarde do Domingo, os temores de que se via presa inclusive, confessando-lhe ousadamente os pormenores da fuga de Joel sem omitir as atitudes desde muito suspeitosas de Hildebrando em torno da jovem prometida de seu filho, concluindo por lhe desvendar o recalcitrante desejo de se transferir com a família para fora de Portugal, a fim de se precatarem contra a eterna perspectiva das desumanas perseguições. 

Talvez sentindo-se em desespero de causa, ou excitado pelos acontecimentos de dois dias antes, Timóteo estendeu ainda mais a confiança depositada na Condessa e solicitou-lhe o concurso precioso para saírem legalmente do país, de posse dos pequenos haveres que ainda lhes restavam, visto que, já idoso, impossível seria partir destituído de recursos, ao menos para se socorrer, e a família, nos primeiros tempos, em terras estrangeiras. 

Maria ouviu-o atentamente, grandemente interessada. Não o interrompeu sequer com um aparte ou um monossílabo, o que de algum modo impressionou o visitante, desconcertando-o. De quando em vez, como que aprovava com um leve sinal, um movimento de olmos ou de cabeça. E reconhecendo, finalmente, que seu hóspede terminara a ingrata exposição, advertiu, lacônica, mas veemente: 

— Regressai descansado a vossa casa, senhor Fontes Oliveira! Farei o que me estiver ao alcance a fim de vos servir... Quanto a Mariana, será um depósito sagrado para mim! Nenhuma decepção a atingirá enquanto permanecer sob meu teto! 

À noite, no entanto, Maria de Faro sentiu-se insone e agitada, forçando a imaginação no penoso labor mental de criar uma solução que, servindo aos Fontes Oliveira, também não a indispusesse com nenhum representante dos poderes civis e eclesiásticos e ainda com o Rei e 

O Inquisidor-mor, Frei Hildebrando de Azambuja. Seu desejo seria, realmente, beneficiar os perseguidos. Mas a loquaz espanhola seria muito experiente e maliciosa para se arriscar a toldar as boas relações sociais que desfrutava com a proteção a judeus recém-convertidos, que ainda poderiam decepcioná-la, e muito interesseira para se expor ao desagrado de personagens como aquelas que lhe apontavam como inimigos que teria de combater. Na manhã seguinte, por isso mesmo, muito preocupada e mal-humorada, Maria chamou em audiência particular o “escriba” do palácio, espécie de secretário da casa, dos negócios de seu marido, cujas atribuições se dilatavam ao preparo da correspondência particular de cada um, e, depois de algumas indecisões, falou autoritária: 

—Tome do necessário porque ditarei uma carta para pessoa de grande destaque social... 

O “escriba” escolheu do melhor papel de linho com timbres dourados, escudo e armas da casa; da melhor pena de pato e da mais afamada composição de tinta para escrever, dispondo-se ao delicado trabalho (20). E Maria, então, recordando Pilatos, muito digna e majestosamente sentada em sua cadeira “manuelina”, alta e suntuosa qual um trono, ditou o que se segue, alheada dos deveres para com Deus e o próximo, sem suspeitar que criaria, com a traição contida nessa carta, um drama intenso e apavorante, cujas consequências lamentáveis se estenderiam por quatro longos séculos de lágrimas, infortúnios e crimes para outrem e para si, e que a mesma missiva forjaria um elo que enredaria a si própria e ao seu destinatário, elo moral cuja solidez não lhe seria jamais possível romper; e que atada àquele pelas leis de causa e efeito e repercussões conscienciais, palmilharia, futuramente, um tormentoso calvário de provas e expiações, até que expungir conseguisse, da própria consciência, as sombras acusadoras que a deprimiam. Ditava, pois, enquanto o paciente funcionário fazia correr a pena, certo de que uma infâmia a mais ali se praticava, mas isento de responsabilidades conscienciais, porque era apenas um servo, pouco menos que escravo, obedecendo ao seu Senhor:

—“Reverendíssimo Dom Frei Hildebrando de Azambuja — Venerável Inquisidor-mor da Santa Inquisição de Lisboa. Peço vossa bênção com admiração, respeito e suma devoção. Deus seja convosco. Salve, Senhor!

Um fato extraordinário verifica-se no momento em Lisboa, tendo-me por testemunha eventual, o que me impele a dirigir-me a Vossa Reverendíssima, a fim de melhor provar a minha fidelidade incondicional à Santa Inquisição. 

Desde ontem, Reverendíssimo Hildebrando, hospeda-se em minha casa, sob minha tutela temporária, a menina Mariana Fontes Oliveira, vossa paroquiana e pupila espiritual, da qual sou madrinha de batismo por um ato de piedade permitido e aprovado pela nossa Santa Igreja. Trouxe-a o seu tio Silvério Fontes Oliveira, rogando-me aceitá-la a fim de salvaguardá-la de perseguições por ele consideradas iminentes sobre toda a família, mas as quais eu apenas entrevejo no cérebro obumbrado de heresias dos mesmos supostos perseguidos. 

Não desejo, Reverendíssimo, indispor-me com uma instituição tão generosa e benemerente como entendo ser a Santa Inquisição, e por isso participo-lhe não somente a presença da menina Mariana em minha casa, sem autorização de Vossa Reverendíssima, como ainda da pretensão de toda a família em exilar-se para Roma, de qualquer forma, sendo que o primogênito da casa, desde a madrugada de anteontem, ausentou-se de Lisboa... pois o próprio pai, confidencialmente, narrou me os acontecimentos que ocasionaram a sua partida, acontecimentos que muito lamento, julgando-os ofensivos a Vossa Reverendíssima Conquanto eu estime os Fontes Oliveira e até lhes deseje todo o bem possível, encontro-me no dever de escrever a presente epístola a fim de me não considerar cúmplice de atos reprovados pela jurisdição do Estado como da Igreja, coisa grave, da qual não me desejo tornar responsável. Rogo à Vossa Reverendíssima conselhos paternais sobre o que farei da menina Mariana, como sobre todo o momentoso caso. 

Uma hora depois de expedida a carta, Hildebrando de Azambuja era recebido pela Condessa em audiência particular, entretendo-se ambos em secreta conversação durante cerca de duas horas. Ao despedir-se, o religioso osculou a destra da inconsequente fidalga, exclamando enfaticamente: 

— A Circunscrição nº... da Santa Inquisição de Lisboa agradece pela minha voz, Senhora, a valiosa cooperação que acabais de conceder ao decoro e à respeitabilidade da Igreja... 

Retirando-se, Dom Frei Hildebrando de Azambuja tomou imediatas providências para que Joel fosse detido antes de entrar em Roma, localidade em que estaria a coberto de ataques pessoais tão comuns em Lisboa, e de onde, portanto, não seria possível à Inquisição recambiá-lo com facilidade para Portugal. Era, como vemos, o terceiro dia da partida do jovem Aboab e Hildebrando, ressentido pelo descaso e pela desobediência à sua pessoa, e cogitando da melhor forma de castigar o ardoroso mancebo, ignorava, no entanto, a sua partida, visto que realmente não mandara espionar nem sequer concebera a possibilidade do arrojo de uma fuga. Á tarde desse dia, em que visitara a Condessa, portanto, partiu de Lisboa uma escolta armada, constante de cinco homens, à cata do fugitivo e do pagem, legalmente documentada e com ordens rigorosas de prisão ao infrator, devida-mente assinadas e registradas, o que lhe emprestava um irresistível poder. 

Entrementes, Maria de Faro penetrara os aposentos da afilhada e, demonstrando, no semblante grave, insólita frieza, que na véspera se julgaria inconcebível, ordenou sem maiores explicações: 

— Prepare-se, menina Mariana, a fim de retornar ao domicílio de seu tio... Não me será lícito recebê-la como pupila sem uma ordem do juizado e do arcebispado... Terão de me nomear, primeiramente, tutora perpétua, por ordem de El-Rei nosso Senhor, para que me seja viável a sua reeducação ao critério das nossas leis religiosas... uma vez que até agora a menina somente há convivido com seus ascendentes hebraicos, não obstante a instrução recebida sob patrocínio da Igreja... 

Timidamente, muito pálida, Ester retorquiu, os olhos marejados de lágrimas: 

— Senhora, eu sou cristã sincera... Amo a Cruz do Senhor Jesus com a veneração do fundo da minha alma... 

A Condessa pareceu não ouvir e retirou-se sem responder. Uma aia acompanhou de volta a formosa hebreia, deixando-a entregue ao tio. Sem quaisquer explicações fornecidas pela Condessa, Aboab houve de se orientar pelos relatos da sobrinha, porquanto aquela dama, até então amável e prestimosa, não se permitira sequer, agora, a consideração de uma carta esclarecedora da recusa em conservar a afilhada, quando na véspera prometera gentilmente protegê-la. 

Ansioso e incompreensivo e nem confiando no que lhe transmitira Ester, o pobre homem tornou ao palácio no intuito de se entender melhor com a ilustre dama, pois temia haver contribuído, de qualquer forma, para desmerecer no seu conceito, e, insistente e perseverante como soem ser os de sua raça, solicitou nova audiência, aguardando, porém, pela resposta, cerca de duas horas, findas as quais apenas obtivera de um criado descortês esta lacônica decisão: 

— A Senhora Condessa não concede audiência no dia de hoje... 

Sem saber o que pensar e prevendo algo desagradável, o antigo Rabino tornou ao lar, forçando, no íntimo do coração, a esperança de que Maria de Faro houvera mandado explicações por algum especial mensageiro que dele se desencontrara. Mas, em chegando ao próprio domicílio encontrara antes um mandado do “Santo 

Ofício”, para que ele e os filhos comparecessem, ainda aquela tarde, à sede da Circunscrição, a fim de prestarem esclarecimentos urgentes quanto à tentativa de afastamento, de Lisboa, do jovem Henrique Fontes Oliveira, sem a devida autorização do legado do bispado. A cerimônia, não obstante os aparatos e terrores próprios da época, decorreu normalmente. 

Toda a família, a uma só voz, asseverou ignorar a súbita resolução do jovem, pois ele apenas se afastara para o campo, acompanhado do seu pagem, em busca de paisagens para os quadros que tencionava pintar; que, efetivamente, mantinha intenção de se transferir mais tarde para Roma, a fim de aperfeiçoar estudos artísticos, mas que, no momento, apenas perambulava pelas províncias a fim de se inspirar para a obtenção de motivos para os seus quadros... 

Não seria impossível que assim fosse, ao entendimento da Inquisição. Mas o testemunho da Condessa de Faro, cuja carta denunciadora a Frei Hildebrando fora do conhecimento dos juizes e acusadores, fora também levada em muita consideração, para que a palavra dos depoentes prevalecesse. Hildebrando encontrava no argumento excelente ensejo para suas costumeiras façanhas inquisitoriais e também para desforras contra aqueles a quem realmente nunca estimara. 

Os depoimentos foram, pois, considerados de má fé. Contudo, tais deslizes perante as leis do “Santo Ofício” não eram passíveis de prisão e sim de extorsivas multas e indenizações. Houve, portanto, Timóteo, ainda uma vez, de depositar, nos cofres públicos ou nas mãos ávidas dos inquisidores, boas quantias em ouro, o que o reduzira à mediocridade de fortuna, carecendo mesmo até de pôr à venda muitas das preciosidades que possuía, tais como pratarias, cristais, porcelanas, objetos de arte, jóias, etc. 

Não obstante, a vigilância em torno dele e da família recrudesceria — sentenciaram as autoridades — e qualquer outra infração às leis vigentes de tão egrégio tribunal seria punida com a prisão e o respectivo processo. Quanto ao jovem Henrique, ao encalço de quem partira uma pequena tropa, seria preso e processado, porquanto, ainda que se ausentasse de Lisboa apenas para pequena viagem de recreio dentro de Portugal, ele o fizera sem se prevenir com a devida licença das autoridades competentes. Hildebrando, porém, estava certo, como sabemos, de que Joel — ou Henrique — realmente fugira graças à altercação entre ambos à mesa de Fontes Oliveira, conforme as informações fornecidas por Maria de Faro. 

E, apoiando-se na legalidade inquisitorial, pretendia agravar o fato, dele valendo-se a fim de servir as próprias pretensões: — em primeiro lugar, a sua mesma crueldade de inquisidor insaciável, que jamais se eximia de perseguir e maltratar; em segundo — apossar-se de Ester, por quem se sentia incendiar de desordenada paixão, e vingar-se do jovem Henrique, a quem jamais admirara e por quem se reconhecera invariavelmente tratado com altivez e menosprezo. Assim foi que, sem que o infeliz Timóteo de nada desconfiasse, introduziu Hildebrando de Azambuja, no solar hebreu, um espião de sua inteira confiança, procedendo, porém, para tanto, sutil e cautelosamente. O leitor certamente não conceberá o quanto de humilhante e exasperador existia em torno de um indivíduo ou de uma família considerados suspeitos de quaisquer faltas pela Inquisição. 

Tornavam-se, por assim dizer, execrados pela sociedade, que afetava o desprezo demonstrado como não o faria ao pestoso, cujo contacto todos temem e do qual se afastam com asco. Entravam a sofrer a angústia do isolamento social. Desertavam de sua casa os amigos e os comensais mais íntimos. Na rua, davam-lhe as costas, ou trocavam de calçada, quando os encontravam, aqueles que dantes lhes apertavam as mãos e lhes deviam favores. Em muitos casos, os desgraçados perdiam até mesmo o direito de suprir a sua despensa doméstica, porque os marchantes e quitandeiros suspendiam o fornecimento, temerosos de se envolverem em processos idênticos como simpatizantes do judaísmo ou arrolados como testemunhas no tribunal da fé. E nem se julgue que os correligionários de crença corriam a socorrer o perseguido, porque ninguém mais inimigo de um hebreu convertido, mas suspeito de infiel à fé católica, do que outro hebreu convertido, mas não suspeito, ou outro não convertido (21).

(19) Meio de transporte individual muito antigo, que consistia em uma cadeira fechada qual pequeno carro sem rodas, mas provido de dois varais de frente e dois As costas, permitindo a dois homens ou dois animais, a ele atrelados, carregá-lo balouçando-o suavemente no espaço.

(20) Existiam nessa época — (século 16) — tintas coloridas muito vivas e variadas, para a escrita particular, inclusive uma espécie de purpurina dourada, para cartas destinadas a personagens gradas, para a literatura sacra e a poesia. 

(21) A Inquisição perseguia com verdadeiro furor os judeus chamados Cristãos novos”, suspeitando-os, às vezes sem razão, de infiéis aos compromissos assumidos com a Igreja, relapsos na fé católica.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo VII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes 


Subitamente, duas discretas pancadas na porta de acesso aos compartimentos interiores da casa advertiram aos interlocutores que algum escravo lhes desejava falar. Fizeram-no entrar e Aboab ordenou, com lhaneza:

- Pode falar, Gabriel...

Tratava-se não de um escravo, mas de um agregado, mais amigo do que criado, a quem os tratos sofridos, quando da perseguição que vitimara Arammza, deformaram as mãos e os pés, impossibilitando-o para o trabalho. Vivia no solar judaico graças à solidariedade do Rabino, que não desdenhara socorrê-lo, e a título de fiscal dos demais serviçais, ou mordomo. Era hebreu como os patrões, probo e leal para com os seus irmãos de crença, odiando implacavelmente os dominicanos e aqueles que se diziam cristãos, visto que deles tinham advindo todas as desditas que para sempre o infelicitaram. Pedindo licença aos amos, foi dizendo, ansioso, polidamente:

— Se me tivésseis participado da necessidade de salvos-condutos eu vo-los teria fornecido com presteza, Senhor... — pois o servo ouvira a discussão, visto que seria de bom aviso ficarem os serviçais sempre à espreita quando da visita dos padres. — Para as possíveis eventualidades, supro-me sempre, com antecedência, de muitas coisas que se poderão tornar necessárias... possuo, no momento, um salvo-conduto comprado ao filho da Senhora Águeda, que resolveu não mais deixar o Reino...

— Tal alvitre é inviável, meu bom Gabriel... se formos descobertos, sofreremos dez vezes mais...

— Sou de opinião — perdoai a ousadia de emiti-la sem ser solicitado — que todos vós devereis partir hoje mesmo, antes do amanhecer, porque Frei Hildebrando não tardará com a represália, que será inevitável, e para a qual ansiava por um motivo desde muito... Tendes valores preparados para tal emergência... Ide com esse bem móvel e abandonai esta casa, estas obras de arte, vossas indústrias, etc., pois vossa honra e vossa vida valem muito mais... Eu permanecerei aqui guardando tudo... Se houver confiscações, que levem o que quiserem, contanto que escapeis às torturas e às fogueiras... Se me matarem, tanto melhor. 

Não passo de um trapo humano! Impossibilitado de ganhar o próprio sustento, a vida pesa-me sobremodo... Se nada confiscarem, que será difícil de acontecer, e me pouparem a vida, bendito será o “Santo dos Santos” ainda uma vez; liquidarei tudo da melhor maneira e obtereis uma pequena fortuna para juntar à que hoje mesmo podereis carregar... Não tendes tempo a perder... Quanto maior número de léguas puserdes entre vós e esse cruel Azambuja até amanhã, à hora do expediente do “Santo Ofício”, tanto melhor...

— Como poderemos viajar sem salvos-condutos nem licenças? ... não será possível...

— Nas barreiras aceitarão propinas, passareis facilmente, ninguém saberá que sois convertidos recentemente, passareis por fidalgos, se oferecerdes recompensas em ouro, ou comerciantes... e mais valerá arriscar que ficar...

— Teremos de preparar bagagens, arrecadar nossas preciosidades; não será possível uma família viajar assim, tão imprevidentemente, para o estrangeiro...

— À luz do Sol será realmente impossível, senhor! Frei Hildebrando, no momento, porém, estará chegando a sua casa, ainda não pôde refletir, não se refez para deliberar sobre o que tentará para ferir melhor... Lembrai-vos de que vos não poderá prender nem acusar sem que haja denúncias... Demorará a forjá-las... Quererá antes, por agora, dormir o melhor possível, pois estará fatigado de comer da vossa ceia e de beber dos vossos bons vinhos... Partir amanhã, no entanto, seria demasiadamente tarde... Ouso declarar-vos que tal tentativa deveria ter sido realizada desde muito, por todos vós e não apenas por um ou dois, como têm feito, com bons êxitos, muitos dos nossos compatriotas...

— Sim..., mas outros também se desgraçam para sempre...

Finalmente, depois de viva discussão, deliberaram que Joel deixaria Lisboa imediatamente, acompanhado do velho Gabriel, para se dirigir a Roma, onde esperaria em segurança até que a família se lhe fosse reunir, pois Timóteo, já no dia seguinte, começaria a tentar possibilidades para conseguir transferir-se para Roma com os restantes filhos, às ocultas de Azambuja. O salvo-conduto de Gabriel protegeria o fugitivo contra quaisquer eventualidades, ao passo que o ouro que levaria removeria outros tantos obstáculos. Em apenas uma hora, enquanto se preparavam cavalos, foi também preparada a bagagem sucinta e cartas de recomendação que o doutor Timóteo fazia a compatriotas residentes na velha capital dos Bórgias, ao mesmo tempo que lhe depunha nas mãos uma pequena fortuna para que seu exílio se não tornasse excessivamente angustioso fora do lar paterno. A tentativa, no entanto, seria, de qualquer forma, temerária. Joel se apoderaria de uma identidade alheia, o que seria infração gravíssima. O precioso documento fora comprado a outrem, o que o tornava falso, ilegal, revertendo tudo isso em agravantes para aquele que dele se utilizasse.

As estradas e postas de mudas de cavalos eram rigorosamente fiscalizadas pela polícia civil e até mesmo pelos beleguins do “Santo Ofício”, oh! Principalmente por estes! — Porquanto, governo e Inquisição expulsavam frequentemente os judeus do território português, mas perseguiam-nos cruelmente se fugissem, recambiando-os para a prisão e a tortura. Mas o sagrado direito daquele que se sente oprimido é procurar possibilidades de libertação. E ficar, permanecer em Lisboa após desavenças com autoridades inquisitoriais, seria entregar-se voluntariamente à prisão... E só Deus saberia, então, o que mais poderia acontecer...

Quando o velho campanário das proximidades, pois, fez ressoar, pelos ares de Lisboa adormecida, as duas pancadas da madrugada, os portões da velha mansão judaica se descerraram cautelosamente para deixarem escapar, qual sombra atormentada, o seu primogênito e herdeiro bem querido, o qual fugia do lar paterno, forçado por irremediáveis circunstâncias, para nunca mais a ele retornar; deixava a terra onde nascera, e a qual amava, acossado pela crueldade de hipócritas e fanáticos, que se validavam dos poderes de que dispunham, como do nome augusto do Emissário de Deus, para impingir as suas próprias decisões, dando livre curso à torrente das paixões execráveis que lhes extravasavam do ser.

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo VI

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes



O encantamento sugerido pela prece do velho Rei, se tivera a virtude de encorajá-los para as peripécias do futuro, que agora mais do que nunca se pressagiava trevoso, não pudera, no entanto, extrair dos seus corações a profunda conturbação da desolação, prenúncio infalível de momentos decisivos que rondam os homens nas provações terrenas, espécie de pressentimentos ou avisos do que realmente advirá. Perplexos ante os acontecimentos, os três homens não ousavam elevar a voz para qualquer comentário, enquanto Rubem, o mais jovem dentre os filhos, detinha os próprios soluços, aterrorizado, aconchegado ao seio da prima. 

O velho Aboab, justiceiro, reconhecia que a impetuosidade do filho, seu desrespeito exigindo esclarecimentos imediatos, os quais somente a seu pai competiria solicitar, dera causa ao incidente, quando não apenas a boa educação, mas também os deveres de hospitalidade, a respeitabilidade dos visitantes, a vantajosa posição social destes aconselhariam a máxima prudência e toda a vigilância para que jamais as boas relações fossem alteradas entre eles próprios e os ditos religiosos. Ao demais, Joel era um adolescente, contava apenas vinte primaveras, não lhe competindo, portanto, dirigir-se com impertinência a um hóspede cuja idade roçaria pela do seu próprio pai. Entretanto, não se permitia admoestar o primogênito. Compreendia-o acabrunhado, o coração inquietado por emoções penosas e não quisera agravar os seus sofrimentos inutilmente. O moço judeu, porém, em dado momento, como num murmúrio revelador das pungentes ilações que em seu íntimo se multiplicavam, desfez o silêncio:

— Perdoai-me pelo desgosto que vos acabo de causar, meu Senhor e pai! — Disse. — Reconheço-me culpado! Será justo, portanto, que advenham para mim as consequências do erro praticado... Arrependo-me das atitudes tomadas... Deveria sofrear impulsos, comedir revoltas, padecer resignado, porque, afinal, não deixamos de dever favores a estes homens! Espero, no entanto, que venham represálias contra mim somente... E, em verdade, se é necessário uma vítima para aplacar as iras dos nossos eternos algozes, que seja eu e não um de vós. Eu não suportaria assistir aos vossos tormentos...

Aboab, que conservava a cabeça apoiada nas mãos, ergueu para os filhos os olhos marejados de pranto, advertindo, cheio de razão:

— O desastre viria mais cedo ou mais tarde, meu pobre Joel! Se não fora provocado por ti o incidente, sê-lo-ia, inadvertidamente, por um de nós ou por outra qualquer circunstância... Jamais Hildebrando conseguiu iludir-me! De nós todos, o que ele apenas deseja é a posse de Ester e de nossa fortuna! Matar-nos-á no dia em que puder obtê-las! ...

Deteve-se um instante e continuou, enquanto o jovem pintor media a sala em passadas regulares, que os tapetes amorteciam:

— Estive a pensar em que seria preferível humilharmo-nos ainda uma vez, penitenciando-nos publicamente, por havermos ofendido Frei Hildebrando, pagarmos uma indenização e rogarmos seu perdão... (18)

Os dois jovens protestaram, porém, coléricos, pela primeira vez contrariando uma decisão paterna:

— Nunca, meu pai! Jamais deveremos submeter-nos a tão penosa humilhação!

Preferimos a morte, antes do que nos penitenciarmos, rastejando de opróbrio pelo favor de um miserável, como Hildebrando de Azambuja, que nos amesquinhará até à degradação! ...

Mas Timóteo levantou-se, exteriormente sereno como os sofrimentos o ensinaram a conservar-se, e. pousando a destra no ombro do primogênito, replicou:

— Assim julgas, meu pobre Joel, porque ignoras ainda, mercê do Altíssimo, o que seja um calabouço do “Santo Oficio”! A morte, meu filho, a morte, simplesmente, para todos nós aqui reunidos, seria bênção inestimável, que nos valeria por uma glorificação! 

Mas, infelizmente para nós, Hildebrando é inquisidor, o que quer dizer — é cruel e implacável! Sabe torturar, afligir, castigar com minudências odiosas, inconcebíveis! Preferível seria, oh, sim! Uma penitência pública, à qual a sociedade de Lisboa assistiria talvez com indiferença, habituada que está a cenas tais de degradação — a um suplício lento na fogueira ou no cavalete, aos tratos infames e desumanos, nas salas de torturas! ...

Mas novamente os dois jovens, inexperientes e ardorosos, bradaram à uma só voz:

— Não! Jamais! Cem vezes a tortura e a morte! ...

Ester baixou a fronte, humildemente, sem emitir opinião, enquanto o coração se lhe confrangia na expectativa de atribulações imprevisíveis.

(18) Muitas vezes os judeus denominados cristãos novos. Eram obrigados a penitências públicas humilhantes, grotescamente vestidos e empunhando tochas.


Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo V

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes


O moço hebreu amava Ester desde menino, quando a orfandade, tornando-os desditosos, unira a sua infância para solidificar um elevado sentimento de amor, que resistiria à desesperação de todas as dores advindas da perseguição religiosa, das impossibilidades e da ausência, desafiando os séculos para se firmar como virtude imortal que os guiaria a todas as demais conquistas morais indispensáveis ao progresso pessoal. 
Para ele, Ester seria o bem supremo da vida, sua mais doce esperança de felicidade, sua ardente fé no porvir, a mais sagrada e santa aspiração, pelo bem de quem não vacilaria em imolar a própria felicidade e até a vida. Um gesto afetuoso que ela lhe dirigisse, um olhar mais acariciador, um sorriso porventura ainda mais terno que os costumeiros eram dádivas preciosas e inesquecíveis, que ele gostava de recordar em noites de insônia, quando as ânsias do amor inquietavam a sua alma impelindo-a aos mais lindos sonhos que pudessem florescer num coração de vinte anos! Então festejava em doces poemas as graciosas atitudes que tão bem calavam em seu espírito, e, já no dia seguinte, enternecido e tímido, oferecia-os à jovem prometida, depois de trasladá-los para grandes páginas de legítimos pergaminhos, habilmente ornamentadas de caprichosos desenhos e arabescos então muito usados para a literatura, acompanhados sempre das mais belas rosas existentes pelos quintais e jardins da melancólica mansão. 
Se, todavia, a sós consigo, se permitia devaneios tão ardentes, junto da linda jovem portava-se acanhadamente, tal o adolescente incapaz de um monossílabo ante a Senhora inspiradora dos seus primeiros arrebatamentos. Preferia antes ouvi-la cantar, para admirar, em silêncio, as suas feições delicadas, como se contemplasse, efetivamente, a própria encarnação da felicidade. Jamais se atrevera a beijar-lhe sequer a ponta dos dedos ou os anéis dos cabelos... porque em sua presença sentia-se réprobo pelo simples fato de ser homem e considerá-la um anjo, o bom gênio de todos os Aboabs, causa única da felicidade íntima e do íntimo encantamento que balsamizava as apreensões da velha mansão judaica.

Ester, efetivamente, merecia a profunda adoração de que se reconhecia alvo por parte da família. Residindo na companhia do tio desde os seis anos de idade, fora bem verdade que desde a mesma época a todos se impusera pela superioridade moral de que era portadora. Desde então fora como que mãe desvelada: — acalentando o pequenito Rubem, órfão de mãe aos seis meses; divertindo Joel e Saulo com as belas canções que já sabia entoar ou fazendo rir o tio com suas graças de criança amável e inteligente, tal se desde o início da existência houvera compreendido que seu dever de mulher seria, acima de tudo, amar e proteger, tornando-se esteio imarcescível, dentro da própria fragilidade, daqueles varões a quem os desenganos e as lágrimas haviam crestado o coração, por assim dizer, ao pé do berço.

Entrementes, Ester era cristã convicta, sem que a família o suspeitasse, sincera e enternecidamente amando aquele doce “Rabboni” que morrera supliciado numa cruz, entre dois infelizes desajustados do Bem. A convivência com duas bondosas freiras dominicanas, que, por influências da madrinha, a guiavam na instrução religiosa, florescera em virtudes, permitindo à menina entrar em conhecimentos diretos com as leis e a história do Cristianismo primitivo. Ela compreendeu e assimilou tão bem a redentora doutrina do Messias que fácil fora ao seu coração raciocinar que — a Inquisição era uma criação humana, inspirada na ambição e nas paixões pessoais, a antítese daquilo que ela diariamente compreendia e admirava mais; era o escárnio, o crime, que selvagemente se apropriavam do valor incontestável do nome de Jesus Nazareno para servirem às torpezas dos homens, em prejuízo da própria doutrina por aquele ensinada. Tal segredo, porém, era absolutamente seu e ela o guardava cuidadosamente no recesso de sua alma angelical, que somente com o próprio Jesus se confidenciava, durante as orações da noite, quando então descerrava o coração para que apenas ele contemplasse os seus verdadeiros sentimentos, dele recebendo então suaves eflúvios de ânimo e esperanças... Pelas tardes domingueiras, no entanto, se não advinham visitas ou se estas se retiravam mais cedo, reunia-se a pequena família à sombra das oliveiras e dos tamarindeiros do jardim do discreto solar. 

Ternamente harmonizados por um vivo afeto, os jovens irmãos e sua prima conversavam e riam ou ouviam Timóteo narrar as arrebatadoras aventuras do povo de Israel: — Abraão, Jacob, José, o Egito e o cativeiro sob o poder do Faraó ou da Babilônia eram fases inesquecíveis, cujo noticiário conviria ser passado de geração a geração, como estímulo e lições que se decalcariam indelevelmente no coração de cada descendente da raça... Depois era o Decálogo, imarcescível legislação de caráter divino, obtido pelo grande Moisés — o maior vulto da raça e seu maior profeta — em colóquios sublimes com as Potências Celestes, no alto da montanha sagrada do Sinai... E eram a vida e as pregações dos seus amados profetas e sábios... Eram David, o Rei poeta e bem-amado, de vida fértil e tumultuosa, seus amores, suas vitórias nas guerras... Salomão, o Rei sábio e inigualável, que prendara Israel com o Templo sagrado, que tantas honras e consolações espargira, durante séculos, sobre as dores sem fim do “povo eleito”. E o heroísmo e as virtudes daquelas mulheres de Israel, sempre submissas ao dever, sempre lindas e admiráveis, nos relatórios do eloquente Rabino, tais como a própria Ester, que ali estava e ouvia embevecida... Explicava-lhes, em seguida, as Escrituras, ou o ensino dos profetas, dando-lhes ainda a Lei com o conhecimento do Talmude, o livro venerado, que os mais devotados preferiam ler ajoelhados; revelava-lhes a Tora e suas recomendações, seguidas de um desfile majestoso da filosofia do povo hebreu, sofredor, perseguido sempre através dos milênios, mas também sempre invencível e fiel às tradições dos seus remotos ancestrais. Então, entusiasmo especial se apoderava do Rabino e o vigor da oratória elevava-se a cada novo lance da sua épica exposição, purpureando-lhe as faces e alterando-lhe a voz como nos antigos tempos da cátedra, em sua sinagoga...

Extasiados, os jovens ouviam em silêncio, mas intimamente orgulhosos por descenderem dessa raça heroica e tão altamente prendada pelas simpatias do Sempiterno, considerando-se, com efeito, superiores em valor moral a todas as demais raças da Terra. E quando a voz entusiasta de Timóteo estacava e seus olhos se inundavam de comovidas lágrimas de veneração à sua raça, Ester aproximava-se. Tomava a cítara dolente e cantava docemente Salmos do Rei poeta, aquele inesquecível e vitorioso David, encerrando com selos de ouro tão formosos serões domésticos à sombra dos arvoredos do jardim.

A despeito de tudo, porém, jamais se sentiam edificados e confiantes, senão amargurados e temerosos, pois sabiam que uma constante, sinistra ameaça pesava sobre suas cabeças infelizes, como se advertências invisíveis notificassem às suas consciências que uma grande e irremediável fatalidade se aproximava. Sabiam que a confortadora intimidade que se permitiam assim, para dilatarem os oprimidos corações no culto sincero à crença que amavam, era prevista como infração gravíssima e rebeldia, nos códigos da Inquisição, passível de condenação e torturas, quiçá da morte pelo fogo. Era “praticar o judaísmo”, podendo levá-los ao cárcere perpétuo na melhor hipótese, e mais certamente à morte, sob a agravante de já se encontrarem eles batizados e. considerados conversos à fé católica. 

Mas a vida e a história arrebatadora de Israel achavam-se gravadas em suas almas com as impressões de um sentimento tão profundo que eles se esqueciam dos perigos que corriam para se permitirem o consolo supremo de cultuarem o Deus Todo Poderoso e Único — o Deus de Israel — conforme as efusões sacrossantas dos seus corações e a tradição da raça o exigiam. Por isso mesmo, sempre que tais serões se verificavam, Joel e Saulo procuravam aferrolhar os portões e até examinavam armários e arcas de uso: — não fosse algum escravo indiscreto, feito espião do Santo Ofício, se atrever a espreitá-los! Mas, pelas datas veneradas dos hebreus — a Páscoa, o dia da Expiação, o Ano Novo, a Festa dos Tabernáculos, etc., sempre descobriam meios de realizar comemorações condignas, fosse em sua própria casa ou alhures, pelos domicílios de velhos companheiros, onde existiam sinagogas regulares, embora clandestinas. Em ocasiões tais, o Rabino Aboab, culto e eloquente, teria ocasião de exercer o seu mandato de sacerdote hebreu. Discorria então brilhantemente, como o faria da cátedra de uma sinagoga livre, concedendo ainda a palavra àqueles que igualmente desejassem interpretar os conceitos das Escrituras, tal como de uso nos Templos de Israel...

Conheceria Frei Hildebrando de Azambuja esse acervo de infrações cometidas pelos seus amigos neocristãos, contra as leis da Igreja a que servia?

Sim, certamente, mas em parte, visto que sua vigilância em torno dos Fontes Oliveira, como de muitos outros convertidos, era rigorosa, tenaz, sistemática, dissimulada, cruel! Sim, conhecia, mas não havendo ainda nenhuma denúncia contra os mesmos, e, ao demais, esperando arrecadar altos proventos pessoais das relações de amizade com aqueles de quem se propalava amigo, não cuidava de persegui-los e nem mesmo os advertia da inconveniência de estarem “judaizando” quase que ostensivamente, sem o temor e o decoro que se faziam mister na sua situação. Os proventos, ele, efetivamente, os ia arrecadando em somas avultadas, para obtenção de indulgências a benefício de toda a família, celebração de missas para salvação de suas almas, etc. Sua ambição pelo ouro e as riquezas em geral não conhecia limites! Compreendiam, Timóteo e os filhos, que Frei Hildebrando valia-se da qualidade de religioso para lhes extorquir os bens, e que a fortuna que lentamente arrecadava era destinada aos seus cofres particulares e jamais a obras pias ou beneficentes. Enchiam-se, pois, de amargor os aflitos hebreus, cujo agarramento aos bens materiais seria tão absorvente como o do mesmo frade!

Achavam-se, pois, nessa tensão suspeitosa de ameaças mais graves as relações entre a família hebraica e os inquisidores que se diziam seus amigos, quando, em outra noite de Domingo, durante a ceia em casa de Timóteo, exclamou este para Hildebrando, encontrando-se presentes Fausto e Cosme, bem assim toda a família Aboab:

— Meus caros amigos — disse, enquanto os brindava com o copo de vinho à destra —, um favor desejo solicitar de vós neste momento, com cuja concessão provareis ainda uma vez a fiel solidariedade e boa afeição que a mim e aos meus vindes generosamente testemunhando...

Entreolharam-se os religiosos, pousando sobre a mesa o copo já vazio, e fitaram o anfitrião, interrogativos. Este continuou, serena e pausadamente, mas infiltrando no diapasão vocal uma súplica que seria patética ao entendimento de outrem que não fossem os inquisidores, habituados a detestarem intransigentemente, sem maiores razões, os descendentes do “povo eleito”:

— Meus filhos Henrique e José desejam ardentemente aperfeiçoar estudos de pintura e arquitetura em Roma, pois se dedicam a essas artes com sincero entusiasmo, como sabeis, ao mesmo tempo que tencionam agradecer a Sua Santidade as muitas mercês que nos vem concedendo desde há algum tempo... Sabemos, no entanto, que não nos será lícito sairmos daqui, embora temporariamente, sem a devida autorização do Estado e o salvo-conduto da diocese... porquanto, a não ser assim, pareceria tratar-se de uma fuga, o que não corresponderia à expressão da verdade... Estou solicitando, portanto, da vossa proverbial afabilidade, a obtenção do necessário para que meus filhos possam seguir o mais breve possível...

Pesado silêncio acolheu a humilde rogativa, enquanto Aboab e os filhos, de olhos indagadores, ansiosos, fitavam os comensais. Talvez ignorasse o velho Rabino que tal pedido a inquisidores seria uma confissão de que temiam a perseguição e desejavam fugir por uma forma legal, e que, portanto, não só não se haviam verdadeiramente convertido à fé católica como até entendiam que — mais valeria se arriscarem todos à aventura de uma retirada clandestina, embora considerada legal, do que permanecerem sob a sinistra vigilância daqueles em quem reconheciam ferozes inimigos. Talvez ignorasse ainda que, com autoridades mais imparciais, obteria sem muitas dificuldades o que pretendia, desde que favorecesse largas propinas, e não recorrendo a amigos suspeitos. 

Ou, certamente, aos Aboabs em geral atraísse um desses destinos irremediáveis pela vontade humana, uma expiação inalienável com bases num passado reencarnatório remoto, tornando-os alheios ao erro que praticavam com semelhante solicitação, uma vez que desconfiavam da lealdade dos mesmos comensais. O certo foi que, ao cabo de alguns minutos, que aos hebreus se diriam séculos, durante os quais o silêncio se tornou opressivo, Joel — ou Henrique — insofrido, inquiriu de Hildebrando, arriscando-se a censuras azedas diante de autoridades respeitáveis, como o eram o grande Azambuja e seus acólitos, pois muito jovem ainda era para o atrevimento de se insinuar numa conversação do pai, interrogando personagens a quem antes deveria apenas ouvir:

— Não respondeis, senhor Dom Frei Hildebrando? Aguardamos...

Quem suspeitaria a conflagração interior daquele caráter sombrio de inquisidor, cujo coração se precipitava inconvenientemente, em presença da prometida desse adolescente? ... Que estranhas, singulares forças telepáticas se comungariam naquele ambiente, onde vibrações antagônicas se chocavam, em combates que pressagiavam tragédias seculares para seus expedidores? ... Que misteriosa atração unia essas personagens que intimamente se detestavam, mas que se ligariam, por isso mesmo, umas às outras, através de destinações futuras, sem jamais se poderem libertar? ...

Certamente que seriam os laços do pretérito! Consequências de ações reprováveis que se distenderam de vidas remotas para existências do momento, alongando-se, por isso mesmo, mais tarde, em dolorosos epílogos futuros! E talvez até mesmo os excelentes vinhos dos Aboabs, de uma forma acidental, houvessem perturbado o raciocínio de Hildebrando, dando causa a novos séculos de lutas fratricidas, pois que, voltando-se para o jovem interlocutor, respondeu, imoderado, agressivo:

— Ah, sim? ... Esperas a resposta?... Não herdaste a lhaneza de teu pai, pois ele não exigiu imediata solução ao grave problema que acaba de propor... Tu, aperfeiçoares estudos em Roma? ... Desde quando os malditos descendentes de Caim se dão ao luxo de se tornarem artistas? ... Enganas-te, pequeno herege, supondo-me tão simplório que não compreenda, claramente, que o que tu e os teus sonhais é a libertação da nossa fiel e benévola vigilância a fim de retornardes ao culto detestável dos teus avós, membros da família do Iscariotes... Vai, segue para Roma... Torna-te um novo Rafael ou, se puderes, suplanta Miguel Ângelo nas vocações artísticas... Mas seguirás sem os haveres de teu pai... Deixarás em Portugal quanto possuíres... E nem se permitirá que recebas mesadas idas daqui... Nada levarás, nem mesmo tua noiva, para que se torne tua mulher...

Acirrado debate seguiu-se então entre o jovem estudante e o frade. Insultos foram trocados com rancor e violência, ambos atirando à face um do outro o fel que desde muito lhes amargurava o coração, O nome de Ester, pronunciado várias vezes por Azambuja, que já não podia ou não queria ocultar o segredo que lhe tumultuava o peito, tornou-se o ponto central da precipitosa altercação, a qual ia revelando, de um lado, o despeito que desde muito amesquinhava o íntimo do inquisidor, do outro, o ciúme mortificante, temeroso das represálias do futuro. E ambos os antagonistas, esquecidos dos princípios da boa educação que deveriam continuar cultivando, deixavam-se levar pela cólera a ponto de se levantarem da mesa, aproximando-se um do outro para melhor se insultarem.

Aflito, Timóteo insistia em conter o filho, chamando-o à razão, exigindo dele que se calasse, rogando-lhe apresentasse excusas e pedisse perdão ao “amigo” a quem toda a família tantos “benefícios” devia... Em vão Saulo igualmente tentava interpor-se entre os dois litigantes a fim de serená-los, afastando para longe o irmão, cuja revolta, comprimida desde muito, agora crescia sob os insultos do religioso. Joel, porém, muito jovem e impetuoso, caráter viril subjugado por inalterável opressão desde a infância, e, ao demais, exasperado ante a desfaçatez e a deslealdade daqueles que se infiltravam como amigos para melhor os atacarem e destruí-los, lançava aos ares toda a repulsa por que se sentia invadir, confessando desassombradamente aos padres o asco e o horror que eles próprios e sua crença lhe inspiravam. Em dado instante, ouvindo do adversário um insulto mais chocante, Joel atira-lhe no rosto os restos do vinho de um copo pegado ao acaso, sobre a mesa, num supremo desafogo. 

Perplexos ante ofensa tão grave e audaciosa, os três religiosos nada conseguiram dizer nos primeiros momentos, emudecendo de surpresa. Mas, de súbito, um punhal brilhou nas mãos de Hildebrando, retirado de sob as dobras da sotaina... três punhais luziram nas mãos dos três representantes do “Santo Ofício”, que se dispuseram a avançar para o agressor a fim de lhe cobrarem bem caro a ousadia, enquanto o velho Rabino procurava defender o filho, interpondo-se entre ele e os atacantes, e Saulo, na timidez dos dezessete anos de idade, deixava ouvir aflitivos brados de terror... Mas eis que Ester intervém, surpreendida e conciliadora, conseguindo, não sem grande esforço, aplacar a excitação geral... Os punhais, então, voltaram a se esconder sob as sotainas negras, depois de ferirem levemente Joel e Timóteo... Um sorriso enigmático, suspeitoso, crispou os lábios do terrível Azambuja, o qual, dirigindo-se à linda hebreia, verberou, traindo ódio execrável no tono vocal:

— Chegaste em momento preciso para fazer-me refletir, bela menina... Não, nada de violência! ... Devo humilhar-me e ponderar... Será imprescindível que a razão se conserve absolutamente do meu lado... Saberei obter melhores oportunidades para a desforra deste imperdoável insulto! ... oh! E saberei escolhê-las! Tua dedicação acaba de salvar a vida a teu noivo... Sim, linda flor, tu o amas! Mas juro pela minha honra de dominicano que não vos pertencereis jamais! Vejamos, encantadora heregezinha, se algum dia o teu prometido poderá retribuir o favor que lhe acabas de prestar...

Completou a despeitada arenga com uma gargalhada insultuosa, voltando-se em seguida para os companheiros e prosseguindo, trágico, afetando mágoa profunda:

— Afastemo-nos deste antro, caros irmãos, o qual em mal inspiradas ocasiões hemos frequentado... Nada mais temos a fazer na intimidade destes ingratos, cujos umbrais se cerraram para nós... Sois testemunhas da afronta que me infligiram... a mim, Inquisidor-mor de Portugal! ... E como fui desrespeitado, menosprezado, quase assassinado por estes malditos judeus! ...

Encaminhou-se para a porta de saída, seguido de Fausto e de Cosme. No auge da aflição, Timóteo tentou detê-los, apelando para a velha amizade que os unia. Mas foi em vão. Sem mais uma palavra, mudos e com as feições alteradas pelo ressentimento, suspenderam os capuzes, cobrindo as cabeças... e lá se foram — aves agourentas e vorazes, corvejando novas presas para seus macabros festins, enquanto os portões da mansão rangiam os velhos ferrolhos às suas costas...

Qual o condenado às vésperas do suplício, o infeliz Rabino deixou-se cair sucumbido em sua costumeira poltrona, ocultou entre as mãos o rosto alterado pela angústia e, entregando-se a mortificante pranto, exclamou para os filhos, as palavras entrecortadas pela aflição:

— Sim, estamos perdidos! A desgraça entrou irremediavelmente, hoje, em nossa casa! Meus pobres filhos, minha pequena Ester, que estará reservado, ainda, para vós? ...

Mas uma sugestiva e doce voz, como o prelúdio dos anjos ensaiando glorificações aos complacentes Céus — a voz de Ester — dominou a dramaticidade do momento, para que um raio de esperança e refrigério suavizasse as trevas em que se sentiam mergulhados aqueles que tão caros eram ao seu coração. Ela orou com meiguice e simplicidade, como lhe era habitual. E ao som dolente da cítara que ela tanto amava, Timóteo e os filhos ouviram o sussurrar predileto, que outrora, em milênios passados, acalmaria também as aflições do Rei David:

— “O Senhor é o meu Pastor, E nada me faltará...

A suaves campos me guiou
E me conduziu a fontes de água fresca e pura...
O Senhor converteu
A minha alma,
Tornou-a humilde E agradecida...
Elevou-me por estradas justas Por amor do seu nome....
Ainda quando eu me desvie
Pelo vale da dor e da morte,
Não temerei males,
Porque tu, meu Deus, Estarás comigo!
A tua proteção,
A tua vigilância,
Eu sei que me acompanharão!
E a tua misericórdia irá
Após mim,
Docemente me inspirando
Em todos os dias
Da minha vida,
A fim de que
Eu permaneça
Sob a luz da tua bênção,
E também da tua paz,
Pela eternidade Dos tempos...“ (17) 

* * *

As doze badaladas da meia-noite ressoaram, lúgubres, impressionantes, qual o lamento funéreo de uma despedida, pelos ares de Lisboa adormecida, em um campanário próximo...

(17) Adaptação do Salmo 22, de David.

Oração a Maria de Nazaré

Maria mãe espiritual de toda humanidade, saudamos-te cheia de graça e pedimos a assistência para os abandonados. Força para o...