quinta-feira, 25 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo V

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes


O moço hebreu amava Ester desde menino, quando a orfandade, tornando-os desditosos, unira a sua infância para solidificar um elevado sentimento de amor, que resistiria à desesperação de todas as dores advindas da perseguição religiosa, das impossibilidades e da ausência, desafiando os séculos para se firmar como virtude imortal que os guiaria a todas as demais conquistas morais indispensáveis ao progresso pessoal. 
Para ele, Ester seria o bem supremo da vida, sua mais doce esperança de felicidade, sua ardente fé no porvir, a mais sagrada e santa aspiração, pelo bem de quem não vacilaria em imolar a própria felicidade e até a vida. Um gesto afetuoso que ela lhe dirigisse, um olhar mais acariciador, um sorriso porventura ainda mais terno que os costumeiros eram dádivas preciosas e inesquecíveis, que ele gostava de recordar em noites de insônia, quando as ânsias do amor inquietavam a sua alma impelindo-a aos mais lindos sonhos que pudessem florescer num coração de vinte anos! Então festejava em doces poemas as graciosas atitudes que tão bem calavam em seu espírito, e, já no dia seguinte, enternecido e tímido, oferecia-os à jovem prometida, depois de trasladá-los para grandes páginas de legítimos pergaminhos, habilmente ornamentadas de caprichosos desenhos e arabescos então muito usados para a literatura, acompanhados sempre das mais belas rosas existentes pelos quintais e jardins da melancólica mansão. 
Se, todavia, a sós consigo, se permitia devaneios tão ardentes, junto da linda jovem portava-se acanhadamente, tal o adolescente incapaz de um monossílabo ante a Senhora inspiradora dos seus primeiros arrebatamentos. Preferia antes ouvi-la cantar, para admirar, em silêncio, as suas feições delicadas, como se contemplasse, efetivamente, a própria encarnação da felicidade. Jamais se atrevera a beijar-lhe sequer a ponta dos dedos ou os anéis dos cabelos... porque em sua presença sentia-se réprobo pelo simples fato de ser homem e considerá-la um anjo, o bom gênio de todos os Aboabs, causa única da felicidade íntima e do íntimo encantamento que balsamizava as apreensões da velha mansão judaica.

Ester, efetivamente, merecia a profunda adoração de que se reconhecia alvo por parte da família. Residindo na companhia do tio desde os seis anos de idade, fora bem verdade que desde a mesma época a todos se impusera pela superioridade moral de que era portadora. Desde então fora como que mãe desvelada: — acalentando o pequenito Rubem, órfão de mãe aos seis meses; divertindo Joel e Saulo com as belas canções que já sabia entoar ou fazendo rir o tio com suas graças de criança amável e inteligente, tal se desde o início da existência houvera compreendido que seu dever de mulher seria, acima de tudo, amar e proteger, tornando-se esteio imarcescível, dentro da própria fragilidade, daqueles varões a quem os desenganos e as lágrimas haviam crestado o coração, por assim dizer, ao pé do berço.

Entrementes, Ester era cristã convicta, sem que a família o suspeitasse, sincera e enternecidamente amando aquele doce “Rabboni” que morrera supliciado numa cruz, entre dois infelizes desajustados do Bem. A convivência com duas bondosas freiras dominicanas, que, por influências da madrinha, a guiavam na instrução religiosa, florescera em virtudes, permitindo à menina entrar em conhecimentos diretos com as leis e a história do Cristianismo primitivo. Ela compreendeu e assimilou tão bem a redentora doutrina do Messias que fácil fora ao seu coração raciocinar que — a Inquisição era uma criação humana, inspirada na ambição e nas paixões pessoais, a antítese daquilo que ela diariamente compreendia e admirava mais; era o escárnio, o crime, que selvagemente se apropriavam do valor incontestável do nome de Jesus Nazareno para servirem às torpezas dos homens, em prejuízo da própria doutrina por aquele ensinada. Tal segredo, porém, era absolutamente seu e ela o guardava cuidadosamente no recesso de sua alma angelical, que somente com o próprio Jesus se confidenciava, durante as orações da noite, quando então descerrava o coração para que apenas ele contemplasse os seus verdadeiros sentimentos, dele recebendo então suaves eflúvios de ânimo e esperanças... Pelas tardes domingueiras, no entanto, se não advinham visitas ou se estas se retiravam mais cedo, reunia-se a pequena família à sombra das oliveiras e dos tamarindeiros do jardim do discreto solar. 

Ternamente harmonizados por um vivo afeto, os jovens irmãos e sua prima conversavam e riam ou ouviam Timóteo narrar as arrebatadoras aventuras do povo de Israel: — Abraão, Jacob, José, o Egito e o cativeiro sob o poder do Faraó ou da Babilônia eram fases inesquecíveis, cujo noticiário conviria ser passado de geração a geração, como estímulo e lições que se decalcariam indelevelmente no coração de cada descendente da raça... Depois era o Decálogo, imarcescível legislação de caráter divino, obtido pelo grande Moisés — o maior vulto da raça e seu maior profeta — em colóquios sublimes com as Potências Celestes, no alto da montanha sagrada do Sinai... E eram a vida e as pregações dos seus amados profetas e sábios... Eram David, o Rei poeta e bem-amado, de vida fértil e tumultuosa, seus amores, suas vitórias nas guerras... Salomão, o Rei sábio e inigualável, que prendara Israel com o Templo sagrado, que tantas honras e consolações espargira, durante séculos, sobre as dores sem fim do “povo eleito”. E o heroísmo e as virtudes daquelas mulheres de Israel, sempre submissas ao dever, sempre lindas e admiráveis, nos relatórios do eloquente Rabino, tais como a própria Ester, que ali estava e ouvia embevecida... Explicava-lhes, em seguida, as Escrituras, ou o ensino dos profetas, dando-lhes ainda a Lei com o conhecimento do Talmude, o livro venerado, que os mais devotados preferiam ler ajoelhados; revelava-lhes a Tora e suas recomendações, seguidas de um desfile majestoso da filosofia do povo hebreu, sofredor, perseguido sempre através dos milênios, mas também sempre invencível e fiel às tradições dos seus remotos ancestrais. Então, entusiasmo especial se apoderava do Rabino e o vigor da oratória elevava-se a cada novo lance da sua épica exposição, purpureando-lhe as faces e alterando-lhe a voz como nos antigos tempos da cátedra, em sua sinagoga...

Extasiados, os jovens ouviam em silêncio, mas intimamente orgulhosos por descenderem dessa raça heroica e tão altamente prendada pelas simpatias do Sempiterno, considerando-se, com efeito, superiores em valor moral a todas as demais raças da Terra. E quando a voz entusiasta de Timóteo estacava e seus olhos se inundavam de comovidas lágrimas de veneração à sua raça, Ester aproximava-se. Tomava a cítara dolente e cantava docemente Salmos do Rei poeta, aquele inesquecível e vitorioso David, encerrando com selos de ouro tão formosos serões domésticos à sombra dos arvoredos do jardim.

A despeito de tudo, porém, jamais se sentiam edificados e confiantes, senão amargurados e temerosos, pois sabiam que uma constante, sinistra ameaça pesava sobre suas cabeças infelizes, como se advertências invisíveis notificassem às suas consciências que uma grande e irremediável fatalidade se aproximava. Sabiam que a confortadora intimidade que se permitiam assim, para dilatarem os oprimidos corações no culto sincero à crença que amavam, era prevista como infração gravíssima e rebeldia, nos códigos da Inquisição, passível de condenação e torturas, quiçá da morte pelo fogo. Era “praticar o judaísmo”, podendo levá-los ao cárcere perpétuo na melhor hipótese, e mais certamente à morte, sob a agravante de já se encontrarem eles batizados e. considerados conversos à fé católica. 

Mas a vida e a história arrebatadora de Israel achavam-se gravadas em suas almas com as impressões de um sentimento tão profundo que eles se esqueciam dos perigos que corriam para se permitirem o consolo supremo de cultuarem o Deus Todo Poderoso e Único — o Deus de Israel — conforme as efusões sacrossantas dos seus corações e a tradição da raça o exigiam. Por isso mesmo, sempre que tais serões se verificavam, Joel e Saulo procuravam aferrolhar os portões e até examinavam armários e arcas de uso: — não fosse algum escravo indiscreto, feito espião do Santo Ofício, se atrever a espreitá-los! Mas, pelas datas veneradas dos hebreus — a Páscoa, o dia da Expiação, o Ano Novo, a Festa dos Tabernáculos, etc., sempre descobriam meios de realizar comemorações condignas, fosse em sua própria casa ou alhures, pelos domicílios de velhos companheiros, onde existiam sinagogas regulares, embora clandestinas. Em ocasiões tais, o Rabino Aboab, culto e eloquente, teria ocasião de exercer o seu mandato de sacerdote hebreu. Discorria então brilhantemente, como o faria da cátedra de uma sinagoga livre, concedendo ainda a palavra àqueles que igualmente desejassem interpretar os conceitos das Escrituras, tal como de uso nos Templos de Israel...

Conheceria Frei Hildebrando de Azambuja esse acervo de infrações cometidas pelos seus amigos neocristãos, contra as leis da Igreja a que servia?

Sim, certamente, mas em parte, visto que sua vigilância em torno dos Fontes Oliveira, como de muitos outros convertidos, era rigorosa, tenaz, sistemática, dissimulada, cruel! Sim, conhecia, mas não havendo ainda nenhuma denúncia contra os mesmos, e, ao demais, esperando arrecadar altos proventos pessoais das relações de amizade com aqueles de quem se propalava amigo, não cuidava de persegui-los e nem mesmo os advertia da inconveniência de estarem “judaizando” quase que ostensivamente, sem o temor e o decoro que se faziam mister na sua situação. Os proventos, ele, efetivamente, os ia arrecadando em somas avultadas, para obtenção de indulgências a benefício de toda a família, celebração de missas para salvação de suas almas, etc. Sua ambição pelo ouro e as riquezas em geral não conhecia limites! Compreendiam, Timóteo e os filhos, que Frei Hildebrando valia-se da qualidade de religioso para lhes extorquir os bens, e que a fortuna que lentamente arrecadava era destinada aos seus cofres particulares e jamais a obras pias ou beneficentes. Enchiam-se, pois, de amargor os aflitos hebreus, cujo agarramento aos bens materiais seria tão absorvente como o do mesmo frade!

Achavam-se, pois, nessa tensão suspeitosa de ameaças mais graves as relações entre a família hebraica e os inquisidores que se diziam seus amigos, quando, em outra noite de Domingo, durante a ceia em casa de Timóteo, exclamou este para Hildebrando, encontrando-se presentes Fausto e Cosme, bem assim toda a família Aboab:

— Meus caros amigos — disse, enquanto os brindava com o copo de vinho à destra —, um favor desejo solicitar de vós neste momento, com cuja concessão provareis ainda uma vez a fiel solidariedade e boa afeição que a mim e aos meus vindes generosamente testemunhando...

Entreolharam-se os religiosos, pousando sobre a mesa o copo já vazio, e fitaram o anfitrião, interrogativos. Este continuou, serena e pausadamente, mas infiltrando no diapasão vocal uma súplica que seria patética ao entendimento de outrem que não fossem os inquisidores, habituados a detestarem intransigentemente, sem maiores razões, os descendentes do “povo eleito”:

— Meus filhos Henrique e José desejam ardentemente aperfeiçoar estudos de pintura e arquitetura em Roma, pois se dedicam a essas artes com sincero entusiasmo, como sabeis, ao mesmo tempo que tencionam agradecer a Sua Santidade as muitas mercês que nos vem concedendo desde há algum tempo... Sabemos, no entanto, que não nos será lícito sairmos daqui, embora temporariamente, sem a devida autorização do Estado e o salvo-conduto da diocese... porquanto, a não ser assim, pareceria tratar-se de uma fuga, o que não corresponderia à expressão da verdade... Estou solicitando, portanto, da vossa proverbial afabilidade, a obtenção do necessário para que meus filhos possam seguir o mais breve possível...

Pesado silêncio acolheu a humilde rogativa, enquanto Aboab e os filhos, de olhos indagadores, ansiosos, fitavam os comensais. Talvez ignorasse o velho Rabino que tal pedido a inquisidores seria uma confissão de que temiam a perseguição e desejavam fugir por uma forma legal, e que, portanto, não só não se haviam verdadeiramente convertido à fé católica como até entendiam que — mais valeria se arriscarem todos à aventura de uma retirada clandestina, embora considerada legal, do que permanecerem sob a sinistra vigilância daqueles em quem reconheciam ferozes inimigos. Talvez ignorasse ainda que, com autoridades mais imparciais, obteria sem muitas dificuldades o que pretendia, desde que favorecesse largas propinas, e não recorrendo a amigos suspeitos. 

Ou, certamente, aos Aboabs em geral atraísse um desses destinos irremediáveis pela vontade humana, uma expiação inalienável com bases num passado reencarnatório remoto, tornando-os alheios ao erro que praticavam com semelhante solicitação, uma vez que desconfiavam da lealdade dos mesmos comensais. O certo foi que, ao cabo de alguns minutos, que aos hebreus se diriam séculos, durante os quais o silêncio se tornou opressivo, Joel — ou Henrique — insofrido, inquiriu de Hildebrando, arriscando-se a censuras azedas diante de autoridades respeitáveis, como o eram o grande Azambuja e seus acólitos, pois muito jovem ainda era para o atrevimento de se insinuar numa conversação do pai, interrogando personagens a quem antes deveria apenas ouvir:

— Não respondeis, senhor Dom Frei Hildebrando? Aguardamos...

Quem suspeitaria a conflagração interior daquele caráter sombrio de inquisidor, cujo coração se precipitava inconvenientemente, em presença da prometida desse adolescente? ... Que estranhas, singulares forças telepáticas se comungariam naquele ambiente, onde vibrações antagônicas se chocavam, em combates que pressagiavam tragédias seculares para seus expedidores? ... Que misteriosa atração unia essas personagens que intimamente se detestavam, mas que se ligariam, por isso mesmo, umas às outras, através de destinações futuras, sem jamais se poderem libertar? ...

Certamente que seriam os laços do pretérito! Consequências de ações reprováveis que se distenderam de vidas remotas para existências do momento, alongando-se, por isso mesmo, mais tarde, em dolorosos epílogos futuros! E talvez até mesmo os excelentes vinhos dos Aboabs, de uma forma acidental, houvessem perturbado o raciocínio de Hildebrando, dando causa a novos séculos de lutas fratricidas, pois que, voltando-se para o jovem interlocutor, respondeu, imoderado, agressivo:

— Ah, sim? ... Esperas a resposta?... Não herdaste a lhaneza de teu pai, pois ele não exigiu imediata solução ao grave problema que acaba de propor... Tu, aperfeiçoares estudos em Roma? ... Desde quando os malditos descendentes de Caim se dão ao luxo de se tornarem artistas? ... Enganas-te, pequeno herege, supondo-me tão simplório que não compreenda, claramente, que o que tu e os teus sonhais é a libertação da nossa fiel e benévola vigilância a fim de retornardes ao culto detestável dos teus avós, membros da família do Iscariotes... Vai, segue para Roma... Torna-te um novo Rafael ou, se puderes, suplanta Miguel Ângelo nas vocações artísticas... Mas seguirás sem os haveres de teu pai... Deixarás em Portugal quanto possuíres... E nem se permitirá que recebas mesadas idas daqui... Nada levarás, nem mesmo tua noiva, para que se torne tua mulher...

Acirrado debate seguiu-se então entre o jovem estudante e o frade. Insultos foram trocados com rancor e violência, ambos atirando à face um do outro o fel que desde muito lhes amargurava o coração, O nome de Ester, pronunciado várias vezes por Azambuja, que já não podia ou não queria ocultar o segredo que lhe tumultuava o peito, tornou-se o ponto central da precipitosa altercação, a qual ia revelando, de um lado, o despeito que desde muito amesquinhava o íntimo do inquisidor, do outro, o ciúme mortificante, temeroso das represálias do futuro. E ambos os antagonistas, esquecidos dos princípios da boa educação que deveriam continuar cultivando, deixavam-se levar pela cólera a ponto de se levantarem da mesa, aproximando-se um do outro para melhor se insultarem.

Aflito, Timóteo insistia em conter o filho, chamando-o à razão, exigindo dele que se calasse, rogando-lhe apresentasse excusas e pedisse perdão ao “amigo” a quem toda a família tantos “benefícios” devia... Em vão Saulo igualmente tentava interpor-se entre os dois litigantes a fim de serená-los, afastando para longe o irmão, cuja revolta, comprimida desde muito, agora crescia sob os insultos do religioso. Joel, porém, muito jovem e impetuoso, caráter viril subjugado por inalterável opressão desde a infância, e, ao demais, exasperado ante a desfaçatez e a deslealdade daqueles que se infiltravam como amigos para melhor os atacarem e destruí-los, lançava aos ares toda a repulsa por que se sentia invadir, confessando desassombradamente aos padres o asco e o horror que eles próprios e sua crença lhe inspiravam. Em dado instante, ouvindo do adversário um insulto mais chocante, Joel atira-lhe no rosto os restos do vinho de um copo pegado ao acaso, sobre a mesa, num supremo desafogo. 

Perplexos ante ofensa tão grave e audaciosa, os três religiosos nada conseguiram dizer nos primeiros momentos, emudecendo de surpresa. Mas, de súbito, um punhal brilhou nas mãos de Hildebrando, retirado de sob as dobras da sotaina... três punhais luziram nas mãos dos três representantes do “Santo Ofício”, que se dispuseram a avançar para o agressor a fim de lhe cobrarem bem caro a ousadia, enquanto o velho Rabino procurava defender o filho, interpondo-se entre ele e os atacantes, e Saulo, na timidez dos dezessete anos de idade, deixava ouvir aflitivos brados de terror... Mas eis que Ester intervém, surpreendida e conciliadora, conseguindo, não sem grande esforço, aplacar a excitação geral... Os punhais, então, voltaram a se esconder sob as sotainas negras, depois de ferirem levemente Joel e Timóteo... Um sorriso enigmático, suspeitoso, crispou os lábios do terrível Azambuja, o qual, dirigindo-se à linda hebreia, verberou, traindo ódio execrável no tono vocal:

— Chegaste em momento preciso para fazer-me refletir, bela menina... Não, nada de violência! ... Devo humilhar-me e ponderar... Será imprescindível que a razão se conserve absolutamente do meu lado... Saberei obter melhores oportunidades para a desforra deste imperdoável insulto! ... oh! E saberei escolhê-las! Tua dedicação acaba de salvar a vida a teu noivo... Sim, linda flor, tu o amas! Mas juro pela minha honra de dominicano que não vos pertencereis jamais! Vejamos, encantadora heregezinha, se algum dia o teu prometido poderá retribuir o favor que lhe acabas de prestar...

Completou a despeitada arenga com uma gargalhada insultuosa, voltando-se em seguida para os companheiros e prosseguindo, trágico, afetando mágoa profunda:

— Afastemo-nos deste antro, caros irmãos, o qual em mal inspiradas ocasiões hemos frequentado... Nada mais temos a fazer na intimidade destes ingratos, cujos umbrais se cerraram para nós... Sois testemunhas da afronta que me infligiram... a mim, Inquisidor-mor de Portugal! ... E como fui desrespeitado, menosprezado, quase assassinado por estes malditos judeus! ...

Encaminhou-se para a porta de saída, seguido de Fausto e de Cosme. No auge da aflição, Timóteo tentou detê-los, apelando para a velha amizade que os unia. Mas foi em vão. Sem mais uma palavra, mudos e com as feições alteradas pelo ressentimento, suspenderam os capuzes, cobrindo as cabeças... e lá se foram — aves agourentas e vorazes, corvejando novas presas para seus macabros festins, enquanto os portões da mansão rangiam os velhos ferrolhos às suas costas...

Qual o condenado às vésperas do suplício, o infeliz Rabino deixou-se cair sucumbido em sua costumeira poltrona, ocultou entre as mãos o rosto alterado pela angústia e, entregando-se a mortificante pranto, exclamou para os filhos, as palavras entrecortadas pela aflição:

— Sim, estamos perdidos! A desgraça entrou irremediavelmente, hoje, em nossa casa! Meus pobres filhos, minha pequena Ester, que estará reservado, ainda, para vós? ...

Mas uma sugestiva e doce voz, como o prelúdio dos anjos ensaiando glorificações aos complacentes Céus — a voz de Ester — dominou a dramaticidade do momento, para que um raio de esperança e refrigério suavizasse as trevas em que se sentiam mergulhados aqueles que tão caros eram ao seu coração. Ela orou com meiguice e simplicidade, como lhe era habitual. E ao som dolente da cítara que ela tanto amava, Timóteo e os filhos ouviram o sussurrar predileto, que outrora, em milênios passados, acalmaria também as aflições do Rei David:

— “O Senhor é o meu Pastor, E nada me faltará...

A suaves campos me guiou
E me conduziu a fontes de água fresca e pura...
O Senhor converteu
A minha alma,
Tornou-a humilde E agradecida...
Elevou-me por estradas justas Por amor do seu nome....
Ainda quando eu me desvie
Pelo vale da dor e da morte,
Não temerei males,
Porque tu, meu Deus, Estarás comigo!
A tua proteção,
A tua vigilância,
Eu sei que me acompanharão!
E a tua misericórdia irá
Após mim,
Docemente me inspirando
Em todos os dias
Da minha vida,
A fim de que
Eu permaneça
Sob a luz da tua bênção,
E também da tua paz,
Pela eternidade Dos tempos...“ (17) 

* * *

As doze badaladas da meia-noite ressoaram, lúgubres, impressionantes, qual o lamento funéreo de uma despedida, pelos ares de Lisboa adormecida, em um campanário próximo...

(17) Adaptação do Salmo 22, de David.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Oração a Maria de Nazaré

Maria mãe espiritual de toda humanidade, saudamos-te cheia de graça e pedimos a assistência para os abandonados. Força para o...